POETAS de 2013

POETA DO MÊS DE DEZEMBRO
                                 DAVID MOURÃO-FERREIRA
                                                           1927-1996
                     “NO CENTRO DA OBRA DE DAVID M.FERREIRA ESTÁ A MEMÓRIA”

Nasce em Lisboa em 1927.
Licenciou-se em Filologia Românica, na Faculdade de Letras de Lisboa, em 1951, onde foi professor a partir de 1957.







Foi director de várias Publicações, Director do Serviço de Bibliotecas Itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian, Director do Jornal “ A Capital” ( 74/75 ) e Secretário de Estado da Cultura ( de 76 a 79 ). Grande Comunicador, teve intervenções em diversos Programas de Televisão, na RTP, ligados sempre a temas da Cultura, particularmente Poesia e Teatro.








 




Nos poemas mais poderosamente sugestivos de David, é de notar a perícia dos efeitos verbais, jogos de palavras, oposições, sugestões surrealizantes ou barrocas.
Poeta particularmente inspirado na temática do Amor, com “ A Secreta Viagem” – 1950- deu início a uma fecunda actividade poética, parcialmente contida em  Antologia: “ Obra Poética      ( 1980 ).


David foi um grande poeta do amor e do erotismo. “ Nessas duas vertentes da sua obra, avulta a mistura perfeitamente calibrada de alusões mitológicas, geográficas, sociais, culturais, eróticas e pessoais, num tecido verbal em permanente mutação e reajustamento, de que se fazem interrogações e expectativas, epifanias, responsabilidades e angústias” ( Vasco Graça Moura, em “ Antologia da Poesia Portuguesa do Século XIII ao XXI, da Porto Editora ).
Com “ Cancioneiro de Natal” ( 1971 ), recebeu o Prémio Nacional de Poesia.
 
         LITANIA PARA ESTE NATAL

Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
num sótão num porão numa cave inundada
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
dentro de um foguetão reduzido a sucata
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
numa casa de Hanói ontem bombardeada

Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
num presépio de lama e de sangue e de cisco
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
para ter amanhã a suspeita que existe
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
Tem no ano dois mil a idade de Cristo.

 Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
Vê-lo-emos depois de chicote no templo
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
e anda já um terror no látego do vento
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
para nos vir pedir contas do nosso tempo.

         David Mourão-Ferreira 
Em 1986 recebe o Grande Prémio de Novelística da Associação Portuguesa de Escritores pelo romance “ Um Amor Feliz”.


Para Eduardo Prado Coelho – um dos estudiosos da Obra do poeta -  “ no centro da obra de David Mourão-Ferreira, está a Memória”.
A Memória, para David Mourão-Ferreira, sustenta-se de dois excessos: o da fixidez e o da diluição. “ É isso que permite ao poeta instituir uma espécie de cadência do destino no interior da decadência da memória”.

Continuando com Eduardo Prado Coelho, “ se nos debruçarmos sobre a sua poesia, deparamos com uma palavra-chave: vulto”.
É a sua maneira própria de marcar” a margem de sombra, o esbatimento essencial, a indecisão estrutural que envolvem o encontro com cada outro ser”.
AS ÚLTIMAS VONTADES
Deixa ficar a flor,
a morte na gaveta,
o tempo no degrau.
Conheces o degrau:
o sétimo degrau
depois do patamar;
-3-
o que range ao passares;
o que foi esconderijo
do maço de cigarros
fumado às escondidas…
Deixa ficar a flor.
E nem murmures. Deixa
o tempo no degrau,
a morte na gaveta.
Conheces a gaveta:
a primeira da esquerda,
que se mantém fechada.
Quem atirou a chave
pela janela fora?
Na batalha do ódio,
destruam-se, fechados,
sem tréguas, os retratos!
Deixa ficar a flor.
A flor? Não a conheces.
Bem sei. Nem eu. Ninguém.
Deixa ficar a flor.
Não digas nada. Ouve.
Não ouves o degrau?
Quem sobe agora a escada?
Como vem devagar!
Tão devagar que sobe…
-4-
Não digas nada. Ouve:
é com certeza alguém,
alguém que traz a chave.
Deixa ficar a flor.

No primeiro poema do 1º livro publicado – “ A Secreta Viagem”- , pode ler-se: “ Mal fora iniciada a secreta viagem/,um deus me segredou que eu não iria só./ Por isso a cada vulto os sentidos reagem/ supondo ser a luz que o deus me segredou.”

             PRIMAVERA


Todo o amor que nos prendera

como se fora de cera

se quebrava e desfazia

ai funesta Primavera

quem me dera quem nos dera

ter morrido nesse dia.

E condenaram-me a tanto
viver comigo o meu pranto
viver viver e sem ti
vivendo sem no entanto
eu me esquecer desse encanto
que nesse dia perdi.
Pão duro da solidão
é sómente o que nos dão
o que nos dão a comer
que importa que o coração
diga que sim ou que não
se continua a viver.
Todo o amor que nos prendera
que se quebrara e desfizera
em pavor se convertia
ninguém fale em Primavera
quem me dera quem nos dera
ter morrido nesse dia.
               David Mourão-Ferreira

Nos livros mais recentes, a poesia de David Mourão-Ferreira é cada vez mais, “ no apuro e maestria de uma arte das palavras, a celebração da própria poesia como a síntese impossível ( lugar dos contrários, conjugação da água e do fogo, simbiose da terra e do ar, convocação de todas as memórias) ou da poesia como aproximação da música ( viagem que faz em torno de si própria ).”
Crítico Literário e Ensaísta de grande fôlego, foi uma figura cívica destacada, ( nunca deixando de ser um Académico de grande prestígio ), mas nunca se distanciou do dia a dia da sua cidade natal, essa Lisboa branca que o suíço Alain Tanner imortalizou, levando Amália a espalhar cantando, não só a sua poesia, como a de muitos outros grandes poetas portugueses.






O poeta que dizia que “ A Felicidade é uma coisa que não existe mas que por vezes nos acontece ”, morreu, em Lisboa, em 1996.


                TERNURA



Desvio dos teus ombros o lençol,

que é feito de ternura amarrotada,

da frescura que vem depois do sol,

quando depois do sol não vem mais nada...


Olho a roupa no chão: que tempestade!
Há restos de ternura pelo meio,
como vultos perdidos na cidade
onde uma tempestade sobreveio...
Começas a vestir-te, lentamente,
e é ternura também que vou vestindo,
para enfrentar lá fora aquela gente
que da nossa ternura anda sorrindo...
Mas ninguém sonha a pressa com que nós
a despimos assim que estamos sós!
          David Mourão-Ferreira
ILHA
Deitada és uma ilha    E raramente
surgem ilhas no mar tão alongadas
com tão prometedoras enseadas
um só bosque no meio florescente
promontórios a pique   e de repente
na luz de duas gémeas madrugadas
o fulgor das colinas acordadas
o pasmo da planície adolescente
Deitada és uma ilha   Que percorro
descobrindo-lhe as zonas mais sombrias
Mas nem sabes se grito por socorro
ou se te mostro só que me enebrias
Amiga amor amante amada eu morro
da  vida que me dás todos os dias.
    David Mourão-Ferreira
PRESÍDIO
Nem todo o corpo é carne…não, nem todo.
Que dizer do pescoço, às vezes mármore,
às vezes linho, lago, tronco de árvore,
nuvem, ou ave, ao tacto sempre pouco…?
 
E o ventre, inconsistente como o lodo?...
E o morno gradeamento dos teus braços?
Não, meu amor…nem todo o corpo é carne:
É também água, terra, vento, fogo…
 
É sobretudo sombra à despedida;
onda de pedra em cada reencontro;
no parque da memória o fugidio
vulto da primavera em pleno Outono
Nem só de carne é feito este presídio,
pois no teu corpo existe o mundo todo!
           David Mourão-Ferreira
        ELEGIA DO CIÚME
A tua morte, que me importa,
se o meu desejo não morreu?
Sonho contigo, virgem morta,
e assim consigo ( mas que importa? )
possuir em sonho quem morreu.
Sonho contigo em sobressalto,
não vás fugir-me, como outrora.
E em cada encontro a que não falto
inda me turbo e sobressalto
à tua mínima demora.
Onde estiveste? Onde? Com quem?
- Acordo, lívido, em furor.
Súbito, sei : com mais ninguém,
ó meu amor!, com mais ninguém
repartirás o teu amor.
E se adormeço novamente
vou, tão feliz!, sem azedume
- agradecer-te, suavemente,
a tua morte que consente
tranquilidade ao meu ciúme.
        David Mourão-Ferreira
PARAÍSO
Deixa ficar comigo a madrugada,
para que a luz do Sol me não constranja.
Numa taça de sombra estilhaçada,
deita sumo de lua e de laranja.
Arranja uma pianola, um disco, um posto,
onde eu oiça o estertor de uma gaivota…
crepite, em derredor, o mar de Agosto…
e o outro cheiro, o teu, à minha volta!
Depois, podes partir. Só te aconse4lho
que acendas, para tudo ser perfeito,
à cabeceira a luz do teu joelho,
entre os lençóis o lume do teu peito…
Podes partir. De nada mais preciso
para a minha ilusão do Paraíso.
         David Mourão-Ferreira
NOTURNO
Eram, na rua, passos de mulher
era o meu coração que os soletrava.
Era, na jarra, além do malmequer,
espectral o espinho de uma rosa brava...
Era, no copo, além do gim, o gelo;
além do gelo, a roda de limão...
Era a mão de ninguém no meu cabelo.
Era a noite mais quente deste verão.
Era, no gira-discos, o Martírio
de  São Sebastião, de Debussy...
Era, na jarra, de repente um lírio!
Era a certeza de ficar sem ti.
Era o ladrar dos cães na vizinhança.
Era, na sombra, um choro de criança...
       David Mourão-Ferreira
    ROMANCE DE CNOSSOS

Esse canto rouco rouco
das cigarras de Cnossos
ouvi-o logo no porto
depois nos caminhos tortos
que sobem do porto ao ponto
onde ressurge Cnossos.
Mais tarde à beira de um poço
por fim diante dos cornos
destes inúmeros touros
que há no palácio minóico
posso fingir que o não ouço
mas atravessa-me os ossos
alastra por todo o corpo
até me escalda nos olhos
este canto rouco rouco

das cigarras de Cnossos.
Quando num último sopro
souber que não mais acordo
e tudo estiver em torno
imerso no mesmo ópio
decerto ouvirei de novo
no sono dos outros mortos
este canto rouco rouco
das cigarras de Cnossos.
Contudo na manhã de hoje
nem só com isso me importo
pior é sentir que o fogo
lateja sob este solo
todo este calor de forno
não sei já como o suporto
parece haver um acordo
feito entre o solo e o Sol
e terem ambos proposto
como língua de seus votos
este canto rouco rouco
das cigarras de Cnossos.
Mas se o palácio percorro
eis que sofro de outro modo
ver que o palácio é de outros
mas que o labirinto é nosso
que alimentamos o monstro
com o sangue de nós-próprios
que lhe damos o contorno
da sombra do nosso ódio
que lhe buscamos no dorso
os nossos próprios remorsos
e de tudo isto em coro
nos vai verrumando os poros
este canto rouco rouco
das cigarras de Cnossos.
Ó grande Sala do Trono
dos tronos o mais remoto
onde Minos no seu posto
julgará todos os homens
não de assassínios nem roubos
só do que entregam à morte.
E uns colocados no topo
outros no fundo dos fossos
vai repercutir-se em todos
vibrando de pólo a pólo
este canto rouco rouco
das cigarras de Cnossos.
      David Mourão-Ferreira
 
 
 





                                                  


POETA DO MÊS DE NOVEMBRO
A 23 de Setembro morreu, a um mês de fazer 89 anos, ANTÓNIO RAMOS ROSA
É ELE O NOSSO POETA DO MÊS

                                ( 1924-2013 )      

                                                 
Há em toda a poesia de Ramos Rosa, um pulsar cósmico e uma obsessiva procura da pura palavra que diga toda a verdade das coisas e que respire com elas.
                                                    


                                                      
Nasce em Faro, a 17 de Outubro de 1924. Na década de 40 passa a residir em Lisboa.
                                                      

                                                         
                                                      

António Ramos Rosa é um dos grandes poetas portugueses, também reconhecido pelas suas críticas literárias. Durante os anos 50 é director de várias revistas, tais como “Árvore” ( que funda com outros escritores ), “Cassiopeia” ou “ Cadernos do Meio Dia”. Publica nelas os seus primeiros poemas, tal como em “Vértice” e “Seara Nova”.
                                                 


Em Ramos Rosa, a realidade é criada pela palavra que a nomeia, à semelhança dos primórdios da criação. Para que este nascimento se realize, o poeta sente “ a urgência de uma transmutação do silêncio em palavra e voz”, reveladoras de verdade e existência real. Paradisíaca,  a palavra emerge de um espaço e de um tempo primordiais, como se fosse “ uma oculta nascente “ de fogo que incendeia e dá forma ao discurso poético.
                                                   

Sendo a nudez da palavra e não a sua veste tecida de sombras o que sempre importa, é a ESSÊNCIA DA PALAVRA o que o poeta pretende alcançar: “Se conseguir chegar à substância do muro/ acenderei a lâmpada de pedra na montanha”.
Muitos dos seus poemas são verdadeiros ritos de passagem e processos de metamorfose do entendimento e da percepção. É a partir da sombra que melhor se vislumbra a luz:
                                                    

” Como uma lua entre sombras esquiva econfidente/

/ou como um cristal em movimento ou um nadador redondo/o olhar é um nascimento no permanente olvido/e como um navio equilibra a substância das coisas”.
                                                        

Porém, na poesia de Ramos Rosa não há só natureza; há também sociedade que aprisiona e autodetermina o indivíduo, pois ele pretende, através da sua obra, a reedificação  de um mundo novo e vivo, com a “ plena libertação e consumaçao do ser individual, que então se pode desenvolver em comunhão com o universo natural”.                                                                         



                                                       


















 A sua matéria-prima é o concreto e indizível da natureza, “soletrado pela palavra solar e absoluta” que nele é a palavra desnuda e absoluta, por vezes sussurrada e frágil na sua força que, como uma cifra secreta que atravessa o poema, confere sentido à existência e à condição humana.
                                               

Aos 87 anos continua a arrecadar Prémios de Poesia.
                                                    







Morre  em Setembro de 2013 a um mês de fazer 89 anos.


                                                         NO ESPAÇO DE UMA ROSA
                                                                                      ( Inédito de )
                                                                           António Ramos Rosa
                                                                                          ( 2006 )



                                   No espaço de uma rosa
                                   no espaço límpido e tranquilo de uma rosa
                                   num espaço quase imaginário
                                   de uma rosa nua do deserto
                                   que voz é essa que não é uma voz
                                   na claridade de um véu
                                   e ela gravita estática e leve
                                   que tudo se suspende
                                   na extrema leveza da sua transparência
                                   no pudor da rosa no espaço ténue
                                   de uma rosa adormecida
                                   o espaço indiscernível de uma rosa de música.

       AS ÁRVORES TÊM O NOME DE ÁRVORES
                                                                                             

As árvores têm o nome de árvores
e a pedra é pedra. Mas a mulher é árvore
e no pátio um sopro: uma lagartixa sem nome.
A mão desliza nos caminhos minúsculos.
A caneta escreve com a saliva das lâmpadas.
Alegria do sono numa virilha obscura.
Alguém escreve na erva e a erva é a sua camisa.
Tudo se traduz: músculos, nervos, papeis.
Come-se a epiderme frágil de um fantasma.
Quem ouve agora a voz cheia de areia?
As palavras agitam-se entre silhuetas esguias.
Dedos acariciam pedras e folhas, ventres.
Fibras e tendões produzem suor e tinta.
O alento das árvores invade os pequenos vocábulos.
Sem língua e sem dedos o poema caminha
num verde corredor para um arbusto de água.

                                            ( António Ramos Rosa )

        

   NÃO POSSO ADIAR O AMOR PARA OUTRO SÉCULO

                                                                      
Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas.

Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio.

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação.

Não posso adiar o coração.

                  ( António Ramos Rosa )


                            


POETA DO MÊS DE OUTUBRO

                              POETA DE OUTUBRO POR DIREITO

 Dele se comemora em 2013, o 1º Centenário,
        pois nasceu a 19 de Outubro de 1913.
                                       

                                          Tendo morrido em 1980, a 9 de Julho.

- O poeta brasileiro de mais directa comunicação com o público;
                                                               

- Uma das vozes mais graves e profundas onde surge o drama do homem frente à vida, inquieto por ela só, ou por ela e por Deus:



                                                  O FILHO DO HOMEM   

                                                                           

O mundo parou


A estrela morreu



No fundo da treva


O infante nasceu.




Nasceu num estábulo


Pequeno e singelo
Com boi e charrua
Com foice e martelo.

Ao lado do infante

O homem e a mulher

Uma tal Maria

Um José qualquer.

A noite o fez negro

Fogo o avermelhou

A aurora nascente

Todo o amarelou

O dia o fez branco

Branco como a luz

À falta de um nome

Chamou-se Jesus

Jesus pequenino

Filho natural

Ergue-te, menino

É triste o natal.    
             ( Vinícius de Moraes )
Este poema, que foi escrito em 1947, só foi porém publicado em 1960!


                                                                   
                                                                 

Vinicius de Moraes, poeta, intelectual, sonhador incansável na busca de expressões, nasceu no dia 19 de Outubro de 1913, no Rio de Janeiro. A sua fama ultrapassou as fronteiras do Brasil, principalmente pelas suas canções feitas em parceria com músicos tão importantes como Tom Jobim. Juntos, criaram a música que representa a alma da cidade que tanto amaram.

           

                                                                          



Licenciado em Direito, por Oxford, estudou também Língua e Literatura inglesas. Optando pela carreira diplomática ( 1943-69 ), Vinicius é o exemplo do poeta trovador, que aliou a poesia e a música, representando um aspecto original da poesia brasileira, estreitamente ligado à vida quotidiana.


Poeta do amor e da vida, nele se reúnem várias tradições, desde o lirismo camoniano até à libertação surrealista, numa conciliação original.
                   

Em 1962, publicou o livro “ Para Viver Um Grande Amor”, isto claro depois de já desde 1935, ter publicado vários outros.

Diz dele outro grande poeta lusófono, Alexandre O’Neill: “ Do ponto de vista das recorrências, das vivências, das fontes, das raízes, Vinicius é um poeta muito complexo. São muitas as linhas que se cruzam no tecido da sua poesia que dão sinal dessa complexidade” ( e continua O’Neill) – “e arriscaríamos, até, a afirmação de que na moderna poesia brasileira não conhecemos outro poeta em que a tessitura seja tão variada”.

Continuando com Alexandre O’Neill: “ Razoável conhecedor da sua Obra,

Só agora ( no Prefácio da Antologia Selecionada por O’Neill, publicada em “ Cadernos de Poesia 4/ Publicações D. Quixote, Abril de 1969 ), tive a oportunidade de me dar conta de quanto ela é importante para a formação de uma coisa que se chama o gosto, esse gosto que pomos em comer, em amar, em conviver”.

                                                            


Vinicius foi e continua a ser o ídolo de várias gerações pela sua mensagem, pela sua música e pela atmosfera das praias do Rio, que aparece em toda a inconfundível cadência da sua obra.
                                                      


Como poucas pessoas no mundo, Vinicius de Moraes podia afirmar com todas as letra “ Sou Poeta”, sem complexo de culpa pela dimensão dessa palavra.
                                                         

Ele transmitiu a força poética que teve a mágica bossa nova. Era quem unia esse movimento
                                                

Extraordinário e reflectiu como ninguém a sua essência mais pura:amor pela vida, busca do que há de melhor nas pessoas, sensibilidade autêntica.
                                                   

Poderemos fechar estas notas, com uma síntese:

Cálido, humano, reflexivo, com a música e a poesia na alma.

Carioca, brasileiro, latino-americano e universal. POETA DE TODOS.

                                                                 


                             Assim era Vinicius e, como ele, não haverá outro igual.

    

                                      SONETO DO AMOR TOTAL



Amo-te tanto, meu amor…não cante


o humano coração com mais verdade…


amo-te como amigo e como amante


numa sempre diversa realidade.




Amo-te afim, de um calmo amor prestante

e te amo além, presente na saudade
amo-te, enfim, com grande liberdade
dentro da eternidade e a cada instante.
Amo-te como um bicho, simplesmente
de um amor sem mistério e sem virtude
com um desejo maciço e permanente.
E de te amar assim, muito e amiúde
é que um dia em teu corpo, de repente
hei-de morrer de amar mais do que pude.
             
             ( Vinícius de Moraes )
                                                                       
                            BALADA DA PRAIA DO VIDIGAL
                                                                     
A lua foi companheira
na praia do Vidigal
não surgiu, mas mesmo oculta
nos recordou seu luar
teu ventre de maré-cheia
vinha em ondas me puxar
eram-me os dedos de areia
eram-te os lábios de sal.
Na sombra que ali se inclina
do rochedo em Miramar
eu soube te amar, menina
na praia do Vidigal…
Havia tanto silêncio
que para o desencantar
nem meus clamores de vento
nem teus soluços de água.
Minhas mãos te confundiam
vencendo as mãos dos alísios
nas ondas da tu saia.
Meus olhos baços de brumas
junto aos teus olhos de alga
viam-te envolta de espumas
como a menina afogada.
E que doçura entregar-me
àquele mole de peixes
cegando-te o olhar vazio
com meu cardume de beijos!
Muitos lutámos, menina
naquele pego selvagem
entre areias assassinas
junto ao rochedo da margem.
Três vezes submergiste
três vezes voltaste à flor
e te afogaras não fossem
as redes do meu amor.
                                       
Quando voltámos, a noite
parecia em tua face
tinhas vento em teus cabelos
gotas d’água em tua carne.
No verde lençol de areia
um marco ficou cravado
moldando a forma de um corpo
no meio da cruz de uns braços.
Talvez que o marco, criança
já o tenha lavado o mar
mas nunca leva a lembrança
daquela noite de amores
na praia do Vidigal. 
         ( Vinícius de Moraes )                        

                                                TRECHO
Quem foi, perguntou o Celo
que me desobedeceu?
Quem foi que entrou no meu reino
e em meu ouro remexeu?
Quem foi que pulou meu muro
e minhas rosas colheu?
Quem foi, perguntou o Celo
e a Flauta falou: fui eu.
Mas quem foi, a Flauta disse
que no meu quarto surgiu?
Quem foi que me deu um beijo
e em minha cama dormiu?
Quem foi que me fez perdida
e que me desiludiu?
Quem foi, perguntou a Flauta
e o velho Celo sorriu.
              ( Vinícius de Moraes )


                           SONETO DE FIDELIDADE

                                                                              


De tudo, ao meu amor serei atento


antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto


que mesmo em face do maior encanto


dele se encante mais meu pensamento.




Quero vivê-lo em cada vão momento

e em seu louvor hei de espalhar meu canto
e rir meu riso e derramar meu pranto
ao seu pesar ou seu contentamento.
E assim, quando mais tarde me procure
quem sabe a morte, angústia de quem vive
quem sabe a solidão, fim de quem ama
Eu possa me dizer do amor ( que tive ):
que não seja imortal, posto que é chama
mas que seja infinito enquanto dure.
                        ( Vinícius de Moraes )
                                          O FALSO MENDIGO
                                                                                       
Minha mãe, manda comprar um quilo de papel almaço na venda
quero fazer uma poesia.
Diz a Amélia para preparar um refresco bem gelado
e me trazer muito devagarinho
não corram, não falem, fechem todas as portas à chave
quero fazer uma poesia.
Se me telefonarem, só estou para a Maria
se for ministro só recebo amanhã
se for um trote, me chama depressa
tenho um tédio enorme da vida.
Diz a Amélia para procurar a Patética no rádio
se houver um grande desastre vem logo contar
se o aneurisma de dona Ângela arrebentar, me avisa
tenho um tédio enorme da vida.
Liga para vovó Neném, pede a ela uma ideia bem inocente
quero fazer uma grande poesia.
Quando meu pai chegar tragam-me logo os jornais da tarde
se eu dormir, pelo amor de Deus, me acordem
não quero perder nada na vida.
Fizeram bicos de rouxinol para o meu jantar?
Puseram no lugar meu cachimbo e meus poetas?
Tenho um tédio enorme na vida.
Minha mãe estou com vontade de chorar
estou com taquicardia, me dá um remédio
não, antes me deixa morrer, quero morrer, a vida
já não me diz mais nada
tenho horror da vida, quero fazer a maior poesia do mundo
quero morrer imediatamente.
Fala com o presidente para fecharem todos os cinemas
não aguento mais ser censor.
Ah, pensa uma coisa, minha mãe, para distrair teu filho
Teu falso, teu miserável, teu sórdido filho
que estala em força, sacrifício, violência, devotamento
que podia britar pedra alegremente
ser negociante cantando
fazer advocacia com o sorriso exacto
se com isso não perdesse o que por fatalidade de amor
sabe ser o melhor, o mais doce e o mais eterno da tua puríssima carícia.
                                  ( Vinícius de Moraes )
                                                  MAR
                                                                        
Na melancolia de teus olhos
eu sinto a noite se inclinar
e ouço as cantigas antigas
do mar.
Nos frios espaços de teus braços
eu me perco em carícias de água
e durmo escutando em vão
o silêncio.
E anseio em teu misterioso seio
na atonia das ondas redondas
náufrago entregue ao fluxo forte
da morte.
                  ( Vinícius de Moraes )
                                         SINOS DE OXFORD
                                                                             
Cantai, sinos, sinos
cantai pelo ar
que tão puros, nunca
mais ireis cantar
cantai leves, leves
e logo vibrantes
cantai aos amantes e aos que vão amar.
Levai vossos cantos
às ondas do mar
e saudai as aves
que vêm de arribar
em bandos, em bandos
sozinhas, do além
oh, aves! Ó sinos
arribai também!
Sinos! Dóceis, doces
alma de sineiros
brancos peregrinos
do céu, companheiros
indeléveis! rindo
rindo sobre as águas
do rio fugindo…
Consolai-me as mágoas!
Consolai-me as mágoas
Que não passam mais
Minhas pobres mágoas
De quem não tem paz.
Ter paz…tenho tudo
de bom e de bem…
respondei-me, sinos:
a morte já vem?
            ( Vinícius de Moraes )
                                     SONETO À LUA 
                                                                         
Por que tens, por que tens olhos escuros
e mãos lânguidas, loucas e sem fim
quem és, que és tu, não eu, e estás em mim
impuro, como o bem que está nos puros?
Que paixão fez-te os lábios tão maduros
num rosto como o teu criança assim
quem te criou tão boa para o ruim
e tão fatal para os meus versos duros?
Fugaz, com que direito tens-me presa
a alma que por ti soluça nua
e não és Tatiana e nem Teresa:
E és tão pouco a mulher que anda na rua
vagabunda, patética, indefesa
ó minha branca e pequenina lua!
                  ( Vinícius de Moraes )


POETA DO MÊS DE SETEMBRO

"Apesar das ruínas e da morte,
   onde sempre acabou cada ilusão,
    a força dos meus sonhos é tão forte,
que de tudo renasce a exaltação
      e nunca as minhas mãos ficam vazias.

                            ( “Poesia”, 1944 )"

A POSTURA EXEMPLAR DE POETA E CIDADÃ:
 SOPHIA DE MELLO
 BREYNER ANDRESEN
FIGURA INCONTORNÁVEL
    NO PORTUGAL ANTERIOR E POSTERIOR
   À INSTAURAÇÃO DA DEMOCRACIA

Nasceu no Porto em 1919 e morreu em Lisboa em 2004.


Frequentou Filologia Clássica em Lisboa e publicou a sua primeira recolha poética, sob o nome Poesia, em 1947.


Reparte-se pela ficção e pela poesia, embora seja nesta última que a sua inspiração clássica dá ao seu verso uma dimensão solar e luminosa, que permite ouvir nitidamente a palavra com todo o peso da sua musicalidade limpa, ao encontro do modelo clássico.



Vasco Graça Moura em “Poemas Portugueses Antologia da Poesia Portuguesa do século XIII ao século XXI”  diz : “ Sophia de Mello Breyner Andresen escreveu uma das mais belas obras da língua portuguesa. Na sua poesia, as coisas – mesmo as mais abstratas- surgem nítidas, sob uma luz que, sendo natural, é também um princípio estético e ético. Em versos de grande rigor construtivo e musicalidade, Sophia ergueu um mundo próprio, em cujo horizonte brilha o fim das contingências de tempo e espaço.”

A sua escrita, tensa e contida, constrói-se em volta do mar, quer do mar do destino português, quer do mar da Grécia Clássica, a cuja mitologia, Sophia foi buscar muito do material sobre o qual levantou uma obra ímpar quer na poesia contemporânea portuguesa quer na literatura para a infância – “ A Menina do Mar” é uma obra bastamente representada, e tem tido imensas leituras teatrais, todas com imenso êxito.



Dos seus muitos livros de Poesia, cito alguns: “ Coral”, “Ilhas”, “Musa”,
Livro Sexto”, “ Geografia”  e “ O Búzio de Cós e Outros Poemas”, mas muitos mais poderia citar.


Ao carácter excepcional da sua obra acresce portanto a grande exigência moral que a poetisa sempre revelou e que a tornou numa figura cívica incontornável no Portugal anterior e posterior à instauração da democracia.

SOPHIA, UM DOS GRANDES POETAS PORTUGUESES DO MAR


BARCO

 Margens inertes abrem os seus braços,
um grande barco no silêncio parte.
Altas gaivotas nos ângulos a pique,
recém-nascida a luz, perfeita a morte.

Um grande barco parte abandonando
as colunas dum cais ausente e branco.
E o seu rosto busca-se emergindo
do corpo sem cabeça da cidade.

Um grande barco desligado parte
esculpindo de frente o vento norte
perfeito o azul do mar, perfeita a morte

formas claras e nítidas de espanto.
( Sophia de Mello Breyner )

FUNDO DO MAR
                                                           
No fundo do mar há brancos pavores,
Onde as plantas são animais
E os animais são flores.


Mundo silencioso que não atinge
A agitação das ondas.
Abrem-se rindo conchas redondas,
Baloiça o cavalo-marinho.
Um polvo avança
No desalinho
Dos seus mil braços,
Uma flor dança.
Sem ruído vibram os espaços.


Sobre a areia o tempo poisa
Leve como um lenço.


    PORQUE

                                                                  
Porque os outros se mascaram mas tu não    
            Porque os outros usam a virtude                    
            Para comprar o que não tem perdão.                     
            Porque os outros têm medo mas tu não.          


            Porque os outros são os túmulos caiados       

                            Onde germina calada a podridão.                           
            Porque os outros se calam mas tu não.

          
             Porque os outros se compram e se vendem          
             E os seus gestos dão sempre dividendo.                       
             Porque os outros são hábeis mas tu não.
         

             Porque os outros vão à sombra dos abrigos      

             E tu vais de mãos dadas com os perigos.             
             Porque os outros calculam mas tu não.
( Sophia de Mello Breyner )           

NOITE DE ABRIL

                          
Hoje, noite de Abril, sem lua,
A minha rua
É outra rua.

Talvez que por ser mais que nenhuma escura
E bailar o vento leste
A noite de hoje veste
As coisas conhecidas de aventura.

Uma rua nova destruiu a rua do costume.
Como se sempre nela houvesse este perfume
De vento leste e Primavera,
A sombra dos muros espera
Alguém que ela conhece.

E às vezes, o silêncio estremece
Como se fosse a hora de passar alguém
Que só hoje não vem.
                      ( Sophia de Mello Breyner )

25 DE ABRIL


 Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo.
( Sophia de Mello Breyner )

TÚMULO DE LORCA

  Em ti choramos os outros mortos todos 
Os que foram fuzilados em vigílias sem data
Os que perdem seu nome na sombra das cadeias
Tão ignorados que nem sequer pudemos
Perguntar por eles imaginar seu rosto
Choramos sem consolação aqueles que sucumbem
Entre os cornos da raiva sob o peso da força

Não pudemos aceitar. O teu sangue não seca
Não repousamos em paz na tua morte
A hora da tua morte continua próxima e veemente
E a terra onde abriram a tua sepultura
É semelhante à ferida que não fecha

O teu sangue não encontrou nem foz nem saída
De Norte a Sul de Leste a Oeste
Estamos vivendo afogados no teu sangue
A lisa cal de cada muro branco
Escreve que tu fostes assassinado

Não pudemos aceitar. O processo não cessa
Pois nem tu foste poupado à patada da besta
A noite não pode beber nossa tristeza
E por mais que te escondam não ficas sepultado
( Sophia de Mello Breyner )  


POETA DO MÊS DE AGOSTO

PRÉMIO RAINHA SOFIA DE POESIA

IBERO-AMERICANA 2013


“ Se tivesse de começar por uma definição, diria que a escrita é um trabalho manual”.

 Diz Nuno Júdice: “ Há uns anos , foi-me pedido que escrevesse um texto sobre a escrita, no sentido activo do vocábulo: pôr a palavra no papel”.
E desse texto, publicado em A Escrita das Escritas, editado pela Fundação Portuguesa das Comunicações em 2000 foi - com o que nós resolvemos iniciar este texto - o que o poeta destacou.



Nuno Júdice nasceu em 1949, em Mexilhoeira Grande (Algarve ).

Formou-se em Filologia Românica, pela Universidade Clássica de Lisboa. É professor associado da Universidade Nova de Lisboa, onde se doutorou em 1989 ( na área de Literaturas Românicas Comparadas ) com uma tese sobre Literatura Medieval.


Publicou vários livros de ensaio ( estudos sobre teoria da literatura e literatura portuguesa ), para além de crítica regular em jornais e revistas.
É poeta e ficcionista. O seu primeiro livro de poesia foi publicado em 1972.

“Ao ler textos escritos em fases várias da minha vida, em diversas circunstâncias, e em lugares diferentes, há sempre pequenas coisas que transportam uma marca subjectiva
- hesitações de traço, a tinta, o risco da caneta, desvios na linha - que evocam um dia de temporal, uma janela de onde se via o mar ou montanhas, um quarto incaracterístico dando para um desvão”.


Em a “Antologia da Poesia Portuguesa do séc.XIII ao século XXI” da Porto Editora ( Novembro de 2009 ), lê-se o seguinte relativamente à poesia de Nuno Júdice:
“Poesia primeiro do excesso e da desnaturalização do poético”
e “ depois, de uma dicção clássica que percorre e relê incansavelmente todos os topoi * da poesia ocidental, a poesia de Júdice é uma declinação da poesia novecentista como ruína e do poema como alegoria de um excesso de influência e memória que contudo não ressente”.
* - A palavra topoi  que aparece na citação acima feita, é uma palavra grega que significa “Lugar comum” ou “Linha de raciocínio”. Aqui parece-me evidente estar a ser utilizada na sua acepção de  lugar comum.

Entre 1997  2004, desempenhou as funções de Conselheiro Cultural e Director do Instituto Camões em Paris.
Colaborou em acções de divulgação da Cultura portuguesa no estrangeiro, como a Exposição Universal de Sevilha, em 1992, e a Feira do Livro de Frankfurt dedicada a Portugal em 1997.
Recebeu os mais importantes prémios de poesia portugueses e tem livros traduzidos em várias línguas, com destaque para Espanha, Itália, Holanda, México, Bulgária, Suécia, Dinamarca, Vietname, Irão, entre outros. Em França está publicado na colecção “Poésie” da Gallimard.
Em 2009, assumiu a direcção da revista Colóquio-Letras da Fundação Calouste Gulbenkian.
É coordenador com Fernando Pinto do Amaral, dos Seminários de Tradução de Poesia organizados bianualmente pela Fundação Casa de Mateus.




“Tendo usado habitualmente a máquina de escrever para a poesia, desde fins dos anos 60, e depois com o computador, a partir de fim dos anos 80, a minha relação com o texto é, antes demais, uma relação com o teclado.”.
“ É significativo disso que, ao escrever à mão, o que resulta é uma poesia condicionada pela tradição clássica do soneto”.
                  ( Em “ O Breve Sentimento do Eterno” )


Os seus mais recentes livros de Poesia são A Matéria do Poema

(2008) e Guia de Conceitos Básicos (2010).

Já posteriormente a estas datas publicou " Implosão".

POEMAS

A CHEGADA DO AMOR

    O amor chegou, e desembarcou no cais,
onde ninguém o esperava, fazendo
a cidade inteira estremecer, como se
o amor a tocasse.

Mas alguém o viu sair
do barco, e levou-o para a fila
da alfândega, onde lhe perguntaram:” Donde
vem? Que traz consigo? Mostre
o passaporte.” O amor não percebeu
o que lhe pediam; pôs o arco sobre
a mesa, e juntou-lhe as flechas.

Tudo apreendido: não queremos agressões
nesta cidade; proibidas as armas brancas. E
o amor, sem passaporte, ficou no cais,
por entre sacos de lixo e vagabundos
em busca de comida.

E à noite, quando a cidade
adormece, todos perguntam

quando chega o amor.


AS MENINAS DE AVIGNON
                                                                                      
Provavelmente, Picasso não pintou as meninas
de avignon a pensar nos homens que iam às meninas
em avignon; nem se serviu das meninas de avignon
quando as pintou, a partir de mulheres que
não eram meninas, mas modelos, e a quem pedia que
se comportassem como as meninas de avignon, nuas, na
sala de espera do bordel onde os homens de avignon,
quando íam às meninas, as escolhiam a dedo, ou só
ao acaso, porque o que eles queriam não precisava
de grande escolha, mas de um corpo, e qualquer corpo
servia para esses homens que não sabiam que
Picasso iria pintar as meninas de avignon para que
eles não voltassem ao bordel sem pensar, primeiro,
nas meninas de Picasso, e só depois nas meninas
de avignon. Também eu, uma dia, quando fui
a avignon, pensei nas meninas de Picasso, sem
pensar que eram as mesmas mdninas que havia
em avignin, onde Picasso as foi buscar. Mas
não as vi: as meninas de avignon escondem-se de
quem vai a avignon sem saber onde elas estão,
a não ser no quadro de Picasso, que não está
em avignon. E é provável que, se as visse,
pensasse nelas, e não nas meninas de Picasso, para
as pôr num poema que se poderia chamar
como o quadro de Picasso, para que entre as meninas
de Picasso e as meninas do meu poema não houvesse
nenhuma diferença, como se fosse possível passar
das meninas de Picasso para as meninas do meu poema

através da ponte de avignon.
          ( Nuno Júdice )

UM SONETO DE FLORBELA

                                                                                                              
Um dia num café, ouvi uma mulher dizer
o poema de Florbela Espanca que começa “ Eu quero amar,
amar perdidamente...”; e enquanto ela o dizia, eu
tentava ouvir na sua voz a voz de Florbela. Mas essa mulher
tinha a voz rouca, o que talvez se
devesse ao facto de ser professora,
e ter de gritar nas suas aulas, de manhã, para
que os alunos a pudessem ouvir. Nesse tempo de inverno, e
de turmas grandes, era preciso forçar a voz para
que o degelo se fizesse, e as crianças entrassem
nos números e n gramática. Por isso, a mulher
que dizia o poema de Florbela
fazia com que fosse, ela própria, o
poema de Florbela. E é assim, ainda hoje, que o ouço:
dito, numa antiga tarde de inverno, por uma mulher
que o recitava como se estivesse a
ensinar um bê-a-bá da vida a quem, no café, não esperava
ouvir, entre a leitura do jornal e a conversa em voz baixa,
a mais elementar das verdades. O desejo de amar,
amar perdidamente, como Florbela, numa perdida esquina
da memória.
                        ( Nuno Júdice )

HESITAÇÃO

                                                                          
No quarto de António Machado,
em Segóvia, há uma cama de ferro
e uma árvore detrás do vidro; há
uma cantiga de baixo da cama
e um choro dentro do caule; há
um rio ao longo do travesseiro
e um descampado nos lençóis.

Nesse quarto, contando de um
a mil, com a tabuada dos dez,
contam-se os ventos que sopram
da serra; e se os ventos trazem a
chuva, conta-se cada gota que bate
nos vidros, antes de nos trazer
nos ouvidos um choro por ninguém.

E se a cama está aberta, não é
porque alguém ali se deite. Que
sombras dormem naquela cama,
plantando segredos que a noite
esconde? Elas puxam, por vezes,
os cobertores da estrofe, abrigando-se
de visitas e comentários, hirtas flores.

Desfaço então a retórica da casa;
abro as janelas, puxo as cortinas
do verso, espreito, por entre as folhas,
Ramos e frutos. E se António Machado
me chama, de dentro, outras vozes
me chamam da rua: conto-as, uma contra
as outras, e não sei para onde ir.
 ( Nuno Júdice )

O SILÊNCIO
                                                                            
Pego num pedaço de silêncio. Parto-o ao meio,
e vejo saírem de dentro dele as palavras que
ficaram por dizer. Umas, meto-as num frasco
com o álcool da memória, para que se
transformem num licor de remorso; outras,
guardo-as na cabeça para as dizer, um dia,
a quem me perguntar o que significam.
Mas o silêncio de onde as Palavras saíram
volta a espalhar-se sobre elas. Bebo o licor
do remorso; e tiro da cabeça as outras palavras
que lá ficaram, até o ruído desaparecer, e só
o silêncio ficar, inteiro, sem nada por dentro.
             ( Nuno Júdice )

CENA DE INVERNO

Parada no meio do campo, na tarde de chuva,

a mulher não avança para o meio da estrada, nem recua

para perto da casa. Apanha chuva, com a cabeça virada
para o chão, como se esperasse que a terra a engula
ou que o céu se esqueça dela, e as nuvens se afastem.

Numa tarde de chuva, no meio do campo, há mulheres
que não sabem para onde ir; e entre a casa e a estrada
ficam paradas, ouvindo o ruído da chuva, e pensando
na vida que as levou para o meio do campo, indecisas
entre a terra e o céu, enquanto a chuva não pára.

Ao ver a mulher parada no meio do campo, pensei
em chamá-la, para que saísse de dentro da lama; mas
continuei o meu caminho, como se ela não existisse,
sabendo que se parasse ao lado dela também eu olharia
para o chão, até que a terra me engolisse.
                        ( Nuno Júdice )


    CENTRO COMERCIAL
                                                                                        
Comprei uma ópera de Wagner, um hambúrguer,
e coca-cola a condizer, maços de tabaco, uma espuma
de barbear, pão, manteiga, meio quilo de batatas,
o jornal de economia, o Quixote em edição
de bolso, dois bergmans pelo preço de um,
outro quixote noutra tradução ( pode ser que
o resultado não seja o mesmo ), uma integral
das cantatas de bach ( não acredito, mas pelo
preço dá para acreditar ), dois pacotes de
leite ( um é oferta ), um dicionário de português
com as novas alterações à ortografia ( não
serve de muito, por agora, mas daqui a dez
anos ser-me-á muito útil ), iogurtes ( nenhum
light, desconfiemos da magreza ), o jornal
da manhã ( o assalto da noite na primeira
página ), queijo ( não como, mas nunca se
sabe ), salada ( também não como, mas faz
bem ), a valsa do imperador ( não vou ouvir,
mas é quase de borla ), e esperei que a bela
moldava da caixa metesse tudo em sacos
para saber se podia pagar com cartão, como

se ela me passasse algum cartão.
( Nuno Júdice )


DE PASSAGEM POR PARIS

                                                                                   
Em frente da igreja de saint-germain, onde as pessoas
entram e saem como se alguma coisa se tivesse passado,
ou estivesse para acontecer, outras pessoas sentam-se na esplanada do café como se não estivesse frio, ou como se o frio não estivesse para chegar. Abro o jornal, enquanto espero que me tragam o café, e penso na relação que existe entre ler o jornal e tomar o café, o que me evita ter de pensar no frio, embora à minha frente possa haver quem
não queira esperar que o frio passe, com o café, e se mude
da esplanada para dentro do café, onde outras pessoas
lêem o jornal sem precisarem de esperar pelo café, nem
de pensarem no frio que as obrigaria a esperar pelo
café para poderem ler o jornal, pensando que o café
irá fazer com que deixem de ter frio. Em alternativa,
poderia ter entrado na igreja de saint-germain, e sentar-me
num banco perto da entrada, para ter luz, e daí poder
saber que ainda é dia, enquanto na igreja não se passar
nada que me faça esquecer que o dia está a passar. Mas
a igreja, de porta aberta para a rua, está tão fria
como a esplanada onde começo a pensar que talvez
o frio não seja tanto como eu penso que é, e o pensar isto já faz com que não precise de esperar pelo café para
abrir o jornal e saber que, no dia de hoje, vai estar
um dia que não será nem frio nem quente, o que
irá fazer com que o frio dependa de cada um, e
não da relação entre o café, que acabei por não
tomar, e do jornal, que acabei por não ler.
   ( Nuno Júdice )

EPISÓDIO DE CAFÉ

              Enquanto esperava pelo criado, no châtelet, ouvindo correr a água do Sena na minha cabeça ( isto é, sentia a água bater contra os arcos da ponte do châtelet, enquanto as lanchas carregadas passavam com as luzes todas acesas, na tarde sombria do Inverno ) sentou-se à minha frente uma rapariga vestida de preto que, por me lembrar a imagem da morte, me fez levantar e sair do café, sem esperar que o criado me viesse perguntar o que queria.
Já na rua, com o ar gélido do Inverno a obrigar-me
a correr para chegar depressa a qualquer sítio onde pudesse ter um pouco de calor, senti atrás de mim os passos da rapariga de negro, correndo, como se a morte me quisesse apanhar. Parei, para que ela passasse por mim; mas quando ela parou à minha frente, para me falar, fiquei à espera do que a morte teria para me dizer.
“ Esqueceu-se dos livros”, disse-me ela. E deu-me o saco de que eu me tinha esquecido, quando saí do café, depois
de a confundir com a morte. “ Por que está vestida de preto?”
Mas ela já não me ouviu; e quando atravessou a rua, e começou a passar a ponte do châtelet, eu é que corri atrás dela, para confirmar se era a morte, ou se apenas se vestira de preto para me obrigar a esquecer-me dos livros, e poder dizer, hoje, que a morte correu atrás de mim para me libertar da sua imagem.
     ( Nuno Júdice ) 


BRAILLE

 Leio o amor no livro
da tua pele, demoro-me em cada
sílaba, no sulco macio
das vogais, num breve obstáculo
de consoantes, em que os meus dedos
penetram, até chegarem
ao fundo dos sentidos. Desfolho
as páginas que o teu desejo me abre,
ouvindo o murmúrio de um roçar
de palavras que se
juntam, como corpos, no abraço
de cada frase. E chego ao fim
para voltar ao princípio, decorando
o que já sei, e é sempre novo
quando o leio na tua pele.
        ( Nuno Júdice )

ODE MARÍTIMA COM TERRA À VISTA
                                                                                      
Um mar encheu e esvaziou-se, esta
noite. Não foi uma maré prevista; não foi
um engano da lua. Um mar subiu quando
o chamei, e desceu quando não
lhe abri a porta. Vi-o rebentar
as ondas contra a fechadura,
como se quisesse rodar a chave
com a espuma. Mandei-o embora, disse-lhe
que me tinha enganado quando
o chamei; e ele fazia levantar as gaivotas
de todos os seus rochedos, e obrigava-as
a voar em roda do patamar, para que as suas asas
batessem nas paredes. Pedi-lhe que me
deixasse; e ele obrigava o vento a soprar,
para que o seu sopro entrasse pelas
frinchas da porta, e impregnasse de maresia
toda a casa. Falei-lhe do horizonte,
para que me deixasse; e ele
empurrava barcos contra as janelas,
como se isso me levasse atrás
das suas velas. Tranquei todas as portas da casa;
desci os estores; apaguei as luzes. O mar
acalmou, por fim. Ouvi-o descer
as escadas, e deixar um areal
na rua da frente. De manhã, quando
saí de casa, as gaivotas dormiam; não
se ouvia nenhum vento; os barcos
naufragados estendiam-se pela rua;
o sol secava a espuma ao longo
dos prédios. Enterrei os pés na areia,
como se estivesse na praia, e
atravessei a rua como se entrasse
no mar.
      ( Nuno Júdice )

                LANZAROTE
                                                                           Nuno Júdice
                                                                  ( Para José Saramago )


Numa ponta da ilha, o infinito; na
outra ponta da ilha, o infinito. De
uma ponta à outra, a ilha é
pequena. Mas cerca-a o infinito,
e quando vamos de uma ponta
à outra, a ilha é demasiado
pequena para o infinito que
a cerca, como se o infinito apenas
servisse para medirmos o tamanho
da ilha. Porém, se olharmos
para a ilha de dentro do infinito,
é o infinito que nos parece
pequeno, quando o medimos pelo
tamanho da ilha.


ROL
                                                               
Paro na rua para ver a montra da mercearia
Como se analisasse um poema. Chouriços e alheiras
Estendem.se como versos, sacos de bacalhau
Arrumados como estrofes, garrafas de azeite
Que dão sabor à secura das rimas, o pão
Que guarda ainda a levedura de um ritmo
Que se mastiga na boca –tudo
está no seu lugar, como se o merceeiro
soubesse que existe uma poética
própria para regular as compras. Depois,
entro na loja; e quando me perguntam
o que quero fico na dúvida: romãs,
ou o verso branco de um pacote
de farinha? Um pedaço de queijo, ou
a metáfora embalada para consumo
rápido? Castanhas ao quilo, como se fossem
sílabas, para assar no forno da frase? E acabo
por sair sem trazer nada, mas com
o poema no saco das compras.
      ( Nuno Júdice )


REGRAS
                                                                            
Há um tabuleiro onde os peões são reis.
Há um livro onde as letras se desfazem.
Há um rio onde nenhuma água corre.
Há uma lembrança onde tudo morre.

As casas do tabuleiro  caíram.
As letras do livro perderam-se.
A água do rio inundou as margens.
O esquecimento secou a memória.

Neste xadrez, onde as regras são
 incertas, só as palavras avançam
e recuam com o tempo que lhes sobra.

E neste livro sem letras nem margens
ponho o que esqueci no tabuleiro da memória,
como se a água ainda corresse no rio sem água.
( Nuno Júdice )





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POETA DO MÊS DE JULHO

Para António Botto
 “ o mais importante na vida é

SER-SE CRIADOR – CRIAR BELEZA”

António Tomás Botto nasceu na Concavada, um pequeno casal pertencente ao concelho de Abrantes, a 17 de Agosto de 1897, segundo os registos paroquiais ( em que também figura o duplo“t” que o poeta foi acusado de usar por pedantismo esteticista...), segundo Jorge de Sena em Líricas Portuguesas.
A família estabeleceu-se no bairro de Alfama – cujo carácter popular se reflecte no populismo da sua poesia e numa das suas peças de teatro.
Empregou-se muito novo numa tipografia, onde conheceu e se tornou amigo de Fernando Pessoa.

Estreou-se com “ Trovas” ( 1917 ); “ Cantigas da Saudade” saíram em 1918 e “ Cantares” em 1919.



 Ficou conhecido depois da publicação de “As Canções “ ( 1921 ).


Para além de poemas, escreveu ensaios, peças de teatro e contos.

Autor de uma obra multifacetada, António Botto conviveu com todas as grandes figuras do modernismo português, tendo sido também colaborador da Revista Presença.




RETRATO FEITO POR ALMADA NEGREIROS


Apesar de polémica, a sua obra gozou sempre de larga audiência, em parte graças à atenção de alguns dos mais altos espíritos do seu tempo, como Teixeira de Pascoaes, José Régio ou Carlos Drummond de Andrade, entre outros.

RÉGIO ESCREVEU SOBRE BOTTO

E se através de estudos críticos ou referências elogiosas em revistas literárias de vanguarda  ou no Prefácio que Manuel Teixeira Gomes, Presidente da República Portuguesa, escreveu para “ As Canções”, - prefácio esse que Fernando Pessoa verteu, com um estudo crítico para o inglês - foi reconhecido, já durante a década de 40 as forças mais conservadoras da sociedade portuguesa começaram a mover-lhe um apertado cerco que o acabaria por levar a ir-se embora de Portugal.



Também grandes personagens das letras estrangeiras, tais como Miguel de Unamuno, Lorca, André Gide, Pirandello ou Malaparte, foram unânimes em saudar nas Canções, o aparecimento de um grande poeta moderno.

*
Nos Poemas, escandalizou o seu canto da beleza masculina, sendo por isso quase ostracizado.

Todavia, são os Poemas que revelando um agudíssimo sentido de ritmo do verso – em que os melhores são aqueles que evocam o quotidiano triste das ruas de Alfama – o elevam a alturas tais, que a Literatura Portuguesa e, principalmente a Poesia, o têm de contar entre os seus pares mais ilustres e já depois da sua morte, a pouco e pouco, o fazem ocupar o lugar a que tem justíssimo direito.



Dono de uma forte personalidade, António Botto tinha um sentido de humor sardónico, incisivo, uma mente e língua perversas e irreverentes, para além de ser um conversador brilhante e inteligente.



Como visitante regular dos bairros boémios de Lisboa e das docas marítimas onde desfrutava a companhia dos marinheiros, tantas vezes tema da sua poesia, a sua saúde deteriorou-se devido à sífilis terciária que ele recusava tratar e o brilho da sua poesia começou a desvanecer-se.

Alvo de troça quando entrava nos cafés, livrarias e teatros, cansou-se por fim de viver em Portugal e em 1947 decidiu emigrar para o Brasil.
Também aí, primeiro em São Paulo e depois no Rio de Janeiro, a sua vida foi-se degradando de dia para dia acabando por viver na mais profunda miséria. 
Veio a morrer atropelado, em 1959, no Rio de Janeiro, aos 61 anos de vida. Só sete anos depois foi trasladado para Portugal.


BIBLIOTECA MUNICIPAL DE ABRANTES

Assim, pode dizer-se que Botto foi “ um dos mais discutidos, mas também dos mais notáveis poetas portugueses, cuja aparição no nosso meio literário foi acompanhada de grande celeuma e de alguns escândalos”.

O que o tornou um mito, inclusivé na própria terra onde nasceu, e levou Joaquina Varandas – poetisa popular da Concavada – a fazer-lhe a seguinte quadra:

“Só tenho pena, na vida,
de não ter cursado um liceu.
Teria a Concavada dois poetas:
o António Botto, mais eu! ”


 PALAVRAS DE UM 
                                     AVESTRUZ TODO GRIS
                                                          ( António Botto )                                                                                                                             
 Arrancam-me as penas
e eu sofro sem dizer nada:
- Sou ave
bem educada.
E, se quisesse,
Podia
morder-lhes as mãos morenas,
a esses
que sem piedade
me roubam estas penas que me cobrem;

e, no entanto,
sem o mais breve gemido,
o meu corpo
vai ficando
desguarnecido…
E elas,
aquelas
que se enfeitam, doidamente,
com estas penas formosas
- Que são minhas !
passam por mim, desdenhosas,
em gargalhadas mesquinhas.

Sim; eu sofro sem dizer nada:
-Sou ave
bem educada.

Mesmo que fosses pequena
e eu te visse pobre ou nua
- Ninguém ama a sua Pátria por ser grande,
mas sim por ser sua !


QUANTO, QUANTO ME QUERES?

  Quanto, quanto me queres? – perguntaste:
numa voz de lamento diluída;
e quando nos meus olhos demoraste
a luz dos teus senti a luz d vida.

Nas tuas mãos as minhas apertaste;
lá fora da luz do Sol já combalida
era um sorriso aberto num contraste
com a sombra da posse proibida...


beijámo-nos, então, a latejar
no infinito e pálido vaivém
dos corpos que se entregam sem pensar...


Não perguntes, não sei – não sei dizer:
um grande amor só se avalia bem
depois de se perder.
                        ( António Botto )

CINCO RÉIS DE GENTE                                                                      

                                                                   de António Botto




Vai sempre na frente
dos outros que vão
cedo para a escola;
corpinho delgado,
o olhar mariola,
-belos os cabelos,
quantos caracóis!
Mas as mangas rotas
nos dois cotovelos
são de andar no chão
atrás dos novelos!
Nos olhos dois sóis
que alumiam tudo!
A mãe tecedeira,
perdeu o marido
mas vive encantada
para o seu miúdo.
                       ( António Botto )

OUTRA

                                                                      
Nem sequer podia
ouvir falar no teu nome.
E se fixava o teu vulto,
irritava-me, sofria
por não poder insultar-te...
Até que um dia,
- foi no inverno, anoitecia.
Chuviscava; - uma chuvinha
Impertinente e gelada
Como sorriso de ironia
Numa boca desejada.

Já não sei o que disseste;
Nem me lembro do que disse...

A chuva continuava.
Atravessámos um jardim.
E à luz fosca
dum candeeiro,
segredaste ao meu ouvido:
quero entregar-te o meu corpo.
E eu acrescentei: - Pois sim.

A chuva tornou-se densa.
Eu ia todo encharcado.
Por fim, chegámos; entrei...

Um marinheiro descia
ajeitando a camisola
e compondo os caracòis.
Era uma casa vulgar,
aonde o amor
- oculto a todos os sois,
se vendia a troco da “real mola”.

Arrependi-me. Blasfemei...
Mas quando abandonei os teus braços
senti que tinha mais alma!

E nunca mais te encontrei.
                                              ( António Botto )

 ...

UMA CANÇÃO  

Nem sequer podia
ouvir falar no teu nome.
E se fixava o teu vulto
irritava-me, sofria
por não poder insultar-te…
até que um dia,
- foi no inverno, anoitecia.
Choviscava: - uma chuvinha
impertinente e gelada
como sorriso de ironia
numa boca desejada.

Já não sei o que disseste;
nem me lembro do que disse…

A chuva continuava.
Atravessámos um jardim.
E à luz fosca
de um candeeiro,
segredaste ao meu ouvido:
Quero entregar-te o meu corpo.
E eu acrescentei: - Pois sim.

A chuva tornou-se densa.
Eu ía todo encharcado.
Por fim, chegámos; entrei…
Um marinheiro descia
ajeitando a camisola
e compondo os caracóis.
Era uma casa vulgar,
aonde o amor
- oculto a todos os sóis,
se vendia a troco da “real mola”.

Arrependi-me. Blasfemei…
Mas quando abandonei os teus braços
senti que tinha mais alma!

E nunca mais te encontrei.

                                     ( António Botto )

  MEUS OLHOS QUE POR ALGUÉM
                                                                             
 Meus olhos que por alguém
deram lágrimas sem fim
já não choram por ninguém
- Basta que chorem por mim.
Arrependidos e olhando
a vida como ela é,
meus olhos vão conquistando
mais fadiga e menos fé.
Sempre cheios de amargura,
mas se as coisas são assim,
chorar alguém – que loucura!
- Basta que eu chore por mim.
                                ( António Botto )
                                                                      
EU ONTEM PASSEI O DIA
Eu ontem passei o dia
ouvindo o que o mar dizia.
Chorámos, rimos, cantámos.
Falou-me do seu destino,
do seu fado…
Depois, para se alegrar,
ergueu-se, e bailando, e rindo,
pôs-se a cantar
um canto molhado e lindo.

O seu hálito perfuma –
e o seu perfume faz mal!
Deserto de águas sem fim…
ó sepultura da minha raça,
quando me guardas a mim?...
Ele afastou-se calado;
eu afastei-me mais triste,
mais doente, mais cansado…
Ao longe, o Sol, na agonia,
de roxo as águas tingia.
- Voz do mar misteriosa;
voz do amor e da verdade!
Ó voz moribunda e doce
da minha grande saudade!
Voz amarga de quem fica,
trémula voz de quem parte…

……………………………..

E os poetas a cantar
são ecos da voz do mar!

                                            ( António Botto )

LISBOA

Lisboa, berço da força
cais das grandes aventuras
onde embarcaram aqueles
em madrugadas escuras
e em barcos de uma só verga
navegando sem receio
de que o mar na sua fúria
partisse de meio a meio
a frágil embarcação,
Lisboa das Descobertas
Pátria de espada na mão!
Lisboa rica de timbres
mas em que um é sempre belo:
- o Sol doirando as ameias
do seu glorioso Castelo!
Ó Lisboa das fragatas
e das manhãs outonais,
dos marinheiros valentes
beijando estas e aquelas
à noite pelos portais.
Lisboa desmazelada
sem garbo, sem atitude,
e sem compostura séria;
Lisboa da fadistice
- Senhora Dona e galdéria!
Lisboa das zaragatas
por qualquer coisa e por nada;
Lisboa dos decilitros
de tasca em tasca, vadia,
complicante e à bofetada;
Lisboa da tradição
- Sorriso de nostalgia!
Quartel do alto heroísmo,
Lisboa chorosa e forte,
saudosa, infeliz, cantando
na plangência de um harmónio
cantigas que ouviu à morte!
Lisboa dos pátios sujos
onde se ralha e se dança
até romper a alvorada!
Descalça, de mãos na ilharga,
impetuosa, vibrante,
Lisboa da garotada
jogando a bola nas ruas.
Lisboa das horas mortas
com namoros à janela
Lisboa dos chafarizes
onde a água é um cantar
de nautas e mareantes;
Lisboa das guitarradas
no lirismo dos amantes!
Lisboa das melancias
descarregadas ao Sol
e aos berros no Cais da Areia.
Lisboa das noites lindas
e onde é oiro a lua cheia!
Ó Lisboa dos mendigos
e dos velhos sem asilo;
Lisboa do céu azul
E onde o Tejo é mais tranquilo.
Lisboa de bairros tristes
Humilde, religiosa
Sem fundos de convicção,
Lisboa do meu amor.
Essa maldita paixão!

                                 ( António Botto )

COMPLICADÍSSIMA TEIA

Quem põe certezas na vida
facilmente se embaraça
na vil comédia do amor
não vale a pena ter alma
porque o melhor é andarmos
mentindo seja a quem for.
Gosto de saber que vives
mas não perdi a cabeça
nem ando atrás do desejo
quem se agarra muito ao sonho
vê o reverso da vida
nos movimentos de um beijo
ando queimado por dentro
de sentir continuamente
uma coisa que me rala
nem no meu olhar o digo
que estes segredos da gente
não devem nunca ter fala
talvez não saibas que o amor
apesar das suas leis
desnorteia os corações
complicadíssima teia
onde se perde o bom senso
e as mais sagradas razões.

                        ( António Botto )


                               POETA DO MÊS DE JUNHO

                             “Natália, uma multiplicidade de carácter,
                              um ser por vezes contraditório”

                Vinte anos depois da morte de NATÁLIA CORREIA

           A bela musa inspiradora a quem muitos chamaram de surrealista, barroca e romântica, nasceu na ilha de São Miguel, nos Açores, no dia 13 de Setembro de 1923.

                            “ Veio do mar, da solidão e da revolta”.
             A FLORESTA DA INFÂNCIA


Húmido pinhal de ramos altos
como lanças no coração de estrelas
petrificado no olhar dos deuses !

Quem como eu no chão de rama verde
estendida se perde
entre as metamorfoses e os meses ?

Quem como eu errando na floresta
embriagada de névoa e de resina
teus deuses celebrou em cada festa
da alma e da retina ?

Quem como eu num canto que persiste
te oferece a imagem que guardei
do teu mistério triste?


                            Foi criada num universo feminino:
                          mãe, irmã, avó, tias, amigas e criadas.



Andava ela pelos seus cinco-seis anos e já sabia da existência dos deuses gregos, antes de conhecer a Bíblia.
                               POEMA POSTO EM SAUDADE


Em ilha verde e anilada
por farturas de pastel,
deu a criação morada
ao Arcanjo São Miguel.

Que lânguida maravilha
de terra no mar deitada
quando a luz enlaça a Ilha
pela cintura delicada!

Matas silentes e lúcidas
do bosque primordial.
Paz de pastos e poentes,
carmins que purpuram o mar.

Ponta Delgada brunida,
engomadas ruas brancas.
No basalto endurecida,
amável nas águas francas.

E, enfim, por rampas de vinhas,
em Vila Franca do Céu
místicas rochas marinhas
em frente, um frade: o Ilhéu.


Era uma jovem com um sentido bastante crítico e uma sensibilidade e imaginação invulgares. Costumava dizer: “ Queriam amesquinhar os meus méritos intelectuais, os meus méritos de escritora, visto que nessa altura as mulheres que escreviam tinham de ser feias”.

No fundo, sempre foi uma solitária com enorme necessidade de ser amada. Seduzia para que a amassem.

Em 1946, publica o seu primeiro poema Manhã Cinzenta, bem como o seu romance Anoiteceu no Bairro. No ano seguinte publicará o seu primeiro livro de poemas: Rio de Nuvens.
                   

Com uma vida pessoal sempre tumultuosa, Natália defendia que “ as mulheres, em Portugal, quando são grandes são superiores aos homens, porque são mulheres e homens ao mesmo tempo”.

Toda a vida se moveu em defesa das pessoas e das causas em que acredita. Por isso se empenhará na denúncia das injustiças, na defesa da cultura, da liberdade, dos direitos humanos, do património, da natureza…sendo implacável com os costumes atávicos e a moral hipócrita, reagindo através da poesia.


Em 1990 recebe o Grande Prémio da Associação Portuguesa de Escritores, pelo livro Sonetos Românticos, a Ordem da Liberdade e a Ordem de Santiago.
                    A ARTE DE SER AMADA


Eu sou líquida mas recolhida
no íntimo estanho de uma jarra
e em tua boca um clavicórdio
quer recordar-me que sou ária

aérea vária porém sentada
perfil que os flamingos voaram.
Pelos canteiros eu conto os gerânios
de uns tantos anos que nos separam.

Teu amor de planta submarina
procura um húmido lugar.
Sabiamente preencho a piscina
que te dê o hábito de afogar.

Do que não vista a minha idade
te inquieta como a ciência
do mundo ser muito velho
três vezes por mim rodeado
sem saber da tua existência.

Pensas-me a ilha e me sitias
de violinos por todos os lados
e em tua pele o que eu respiro
é um ar de frutos sossegados.

                     ( de “ O Vinho e a Lira “ )

Natália Correia, um ser em “permanente conflito, que se procurava algures entre o touro bravo que investe e a pomba branca que pacifica” viu ao longo da vida muitas das suas obras proibidas pelo Estado Novo, nomeadamente a Antologia da Poesia Erótica e Satírica ( 1966 ) que causou grande escândalo e levou a que fosse condenada a três anos de prisão com pena suspensa.

Era uma mulher frontal, com uma necessidade enorme de subverter, quebrar preconceitos, desrespeitar regras, escandalizar, indignar-se…

Morreu no dia 16 de Março de 1993, com 69 anos, aquela que um dia profetizou:” Vai ser preciso passar uma década sobre a minha morte, para
começarem a compreender o que escrevi”.
DUAS DÉCADAS PASSARAM. E AGORA QUE TÊM A DIZER SOBRE ELA ?

Será que já a compreendem e acima de tudo que a lêem?
Espero que sim.
Este blog é feito para que leiam os Poetas e os Amem.
Os conheçam. Os divulguem.
 
Natália e as Tertúlias em sua casa na Rodrigues Sampaio

 Natália a dançar com Sá Carneiro


                                    RETRATO TALVEZ SAUDOSO DA MENINA INSULAR


Tinha o tamanho da praia
o corpo era de areia.
E ele próprio era o início
do mar que continuava.
Princípio de água salgada
principiado na veia.

E quando as mãos se estenderam
a todo o seu comprimento
e quando os olhos desceram
a toda a sua fundura
teve o sinal que anuncia
o sonho da criatura.

Largou o sonho nos barcos
que dos seus dedos partiam
que dos seus dedos paisagens
países antecediam.

E quando o seu corpo se ergueu
voltado para o desengano
só ficou tranquilidade
na linha daquele além
guardado na claridade
do olhar que a retém.
       
                         Natália Correia
        
                                                                                SONETO IV


                                                             Creio nos anjos que andam pelo mundo,
                
                                                             creio na Deusa com olhos de diamantes,

                                                             creio em amores lunares com piano ao fundo,

                                                             creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes.



                                                             Creio num engenho que falta mais fecundo

                                                             de harmonizar as partes dissonantes,

                                                             creio que tudo é eterno num segundo,

                                                             creio num céu futuro que houve dantes.



                                                             Creio nos deuses de um astral mais puro,

                                                             na flor humilde que se encosta ao muro,

                                                             creio na carne que enfeitiça o além.



                                                             Creio no incrível, nas coisas assombrosas,

                                                             na ocupação do mundo pelas rosas,

                                                             creio que o Amor tem asas de ouro. Ámen.


                                                                                                                          Natália Correia


A ALMA



Votada ao fogo obediente ao perigo
feroz do amor ser muito e o tempo pouco,
chegas ébrio de sonho, ó estranho amigo
e eu não sei se por mim és anjo ou louco.

Num beijo infindo queres morrer comigo.
Nesse extremo és sagrado e eu não te toco.
Esquivo-me: o teu sonho mais instigo.
Fujo-te: a tua chama mais provoco.

A incêndio do teu sangue me condenas
e com ciumentas ervas te envenenas
dizendo às nuvens que só tu me viste.

Bebendo o vinho de amantes mortos queres
que eu seja a mais prateada das mulheres.
E de ser tão amada eu fico triste.

                                       Natália Correia

              NATÁLIA POETA.
              NATÁLIA MULHER.
             QUE NOS ANOS 60 TINHA OS HOMENS DE LISBOA - E NÃO SÓ - A SEUS PÉS !
             ELA, A MENINA INSULAR...ESCREVEU UM PEQUENO EPITÁFIO SOBRE A OUTRA MULHER POETA, FLORBELA ESPANCA, ESSA GRANDE VOZ ALENTEJANA, QUE BEM JOVEM TAMBÉM VIERA CEDO PARA LISBOA.
             SÃO APENAS CINCO BELÍSSIMOS VERSOS:

                                                                            NO TÚMULO DE FLORBELA



                                                                   Infanta de ossos. No mármore que os veste
                                                                   corre indiferentemente um aranhiço.
                                                                   E tu que a um sopro de ar estremecias
                                                                   agora no país das lajes frias,
                                                                   soberba e mítica nem mesmo dás por isso.

                                                                                    ( de “ O Armistício “,  ( NATÁLIA CORREIA )

                              MAS IGUALMENTE O GÉNIO DE NATÁLIA FOI CANTADO:
                                        "QUEIXA DAS ALMAS JOVENS CENSURADAS"
                                         PELA VOZ ROUCA DE JOSÉ MÁRIO BRANCO





          
















                   





                         POETA DO MÊS DE MAIO
                                 MANUEL ALEGRE
            - UMA VOZ POÉTICA PELA LIBERDADE -

( ÁGUEDA-1936 )



O autor de “ Praça da Canção” e de tantos poemas que foram cantados pelas vozes de Adriano Correia de Oliveira, Zeca Afonso e Amália, é um intelectual que se revela como poeta e resistente a um regime ditatorial.

Desterrado à força, combatente por uma sociedade mais justa e equilibrada transforma-se em “andarilho”, homem de partidas, chegadas e novas partidas, alguém que sonha voltar, como voltou, em liberdade e com a liberdade! É esta “a substância mais pura que a sua obra poética, e não só, nos oferece”.
Foi deputado à Assembleia Constituinte, após o 25 de Abril.
                                               AS FACAS

Quatro letras nos matam quatro facas
que no corpo me gravam o teu nome.
Quatro facas amor com que me matas
sem que eu mate esta sede e esta fome.

Este amor é de guerra. ( De arma branca ).
Amando ataco amando contra-atacas
este amor é de sangue que não estanca.
Quatro letras nos matam quatro facas.

Armado estou de amor. E desarmado.
Morro assaltando morro se me assaltas.
E em cada assalto sou assassinado.

Quatro letras amor com que me matas.
E as facas ferem mais quando me faltas.
Quatro letras nos matam quatro facas.
Detentor de um sentimento patriótico muito aceso, será de entre os poetas representados no Parque dos Poetas, em Oeiras,


talvez aquele que de algum modo estabelece uma ponte simbólica com a época camoniana.

Nasceu em 1936 em Águeda.
É da infância – como o próprio diz – que lhe vêm “ as imagens e as emoções que norteiam a vida “.
Destacou-se como um dos mais destacados dirigentes do movimento estudantil em Coimbra, enquanto estudante de Direito.
Em 1962 foi mobilizado para Angola, como alferes miliciano, para uma zona operacional. Nesse território organizou e dirigiu a 1 tentativa de revolta militar contra o regime e a guerra colonial. A ousadia valeu-lhe seis meses de prisão em Luanda, onde conheceu entre outros, o escritor angolano Luandino Vieira.  




                        ROMANCE DE PEDRO SOLDADO

I
Já lá vai Pedro Soldado
num barco da nossa armada
e leva o nome bordado
num saco cheio de nada.

Triste vai Pedro Soldado.

Branda rola não faz ninho
nas agulhas do pinheiro
nem é Pedro marinheiro
nem no mar é seu caminho.

Nem anda a branca gaivota
pescando peixes em terra
nem é de Pedro essa rota
dos barcos que vão à guerra.

Nem anda Pedro pescando
nem ao mar deitou a rede
no mar não anda lavrando
soldado a mão se despede
do campo que se faz verde
onde não anda ceifando
Pedro no mar navegando.

Onde não anda ceifando
já o campo se faz verde
e em cada hora se perde
cada hora que demora
Pedro no mar navegando.

E já Setembro é chegado
já o verão vai passando.
Não é Pedro pescador
nem no mar vindimador
nem soldado vindimando
verde vinha vindimada.

Triste vai Pedro Soldado.
E leva o nome bordado
num saco cheio de nada.

II
Soldado número tal
Só a morte é que foi dele.
Jaz morto. Ponto final.
O nome morreu com ele.

III
Deixou um saco bordado.
E era Pedro Soldado.
 
Quando regressou, após a desmobilização, foi-lhe imposta residência fixa em Coimbra, mas no verão de 1964, temendo ser de novo preso, partiu para o exílio, em França, fixando-se pouco depois em Argel. Aí, foi o responsável principal e a “voz” da Resistência na “ Voz da Liberdade”.
A par destas actividades políticas na clandestinidade, publicou em 65 e 67, “Praça da Canção” e “ O Canto e as Armas”, poemas com uma extraordinária beleza poética, que ao mesmo tempo que eram apreendidos pela censura salazarista, começaram imediatamente a serem cantados por Zeca Afonso e Adriano Correia de Oliveira.
Eduardo Lourenço, a viver então em França, escreveu em finais de 1967: ”Se queremos um nome e uma obra para marcarmos a mais alta herança do neo-realismo e ao mesmo tempo o seu acabamento – nos dois sentidos do termo – nenhum mais adequado do que o de Manuel Alegre e a sua “Praça da Canção”; e falando mais tarde da sua vasta obra: “ ela sugere espontâneamente aos ouvidos a forma paradigmática da viagem, do viajante ou talvez melhor, do peregrinante”.




Em 1998 publica um poema intitulado “ Senhora das Tempestades” onde canta o espanto, a assombração, a angústia, e o pavor da visitação da morte. Para os estudiosos da sua obra, este poema é o canto angustiado, de tragédia e esperança, do homem como navegante condenado à partida à errância, que em cada viagem se arrisca ao encontro mortal com esta entidade dos desastres e das catástrofes imprevisíveis.
Pela dimensão e a extraordinária qualidade da sua intensa e extensa obra, Manuel Alegre recebeu já muitos e distintos prémios literários, nacionais e internacionais.
Tem a maior parte dos livros traduzidos no estrangeiro, e é estudado em diversas universidades pelo mundo fora.


                     METRALHADORAS CANTAM

Acenderam-se as armas pela noite dentro.
Quem rebenta? Quem morre? Quem vive? Quem berra?
Há um vento de lamentos nos lamentos do vento.
Metralhadoras cantam a canção da guerra.

Cantam granadas a canção da morte.
E há uma rosa de sangue à flor da terra.
Morrer ou não morrer é uma questão de sorte.
Metralhadoras cantam a canção da guerra.

Cantam bazucas e morteiros e estilhaços
cantam esta canção do aço que não erra
no espaço do seu fogo o espaço entre dois braços.
Cantam metralhadoras a canção da guerra.

Há um tiro que parte. Há um corpo que tomba.
Nesta boca fechada há um morto que berra.
Quem estoira no meu peito: o coração? Uma bomba?
Metralhadoras cantam a canção da guerra.

Todo o tempo é uma batalha. Ataque. Fuga.
Fuga. Ataque. Silêncio. Um silêncio que aterra.
Que marca o rosto com seu peso ruga a ruga.
Um silêncio que canta na canção da guerra.

Mina. Emboscada. Pó. Pólvora. Sangue. Fogo.
Acerta não acerta? Erra não erra?
Perdeu todo o sentido dizer-se até logo.
Metralhadoras cantam a canção da guerra.

Cada segundo pode ser o último segundo.
Como enterrar os mortos que a memória desenterra?
Há um poço tão fundo tão fundo tão fundo.
Metralhadoras cantam a canção da guerra.

Há um soldado que grita eu não quero morrer.
E o sangue corre gota a gota sobre a terra.
Vai morrer a gritar eu não quero morrer.
Metralhadoras cantam a canção da guerra.

Houve um que se deitou e disse: Até amanhã.
Mas amanhã é o dia em que se enterra
o soldado que disse: Até amanhã.
Metralhadoras cantam a canção da guerra.

E um jipe corre pela noite dentro.
Avança não avança? Emperra não emperra?
Passam balas de chumbo nas balas do vento.

Metralhadoras cantam a canção da guerra.
E há duzentos quilómetros de morte
em duzentos quilómetros de terra.

Neste caminho de Luanda para o Norte
metralhadoras cantam a canção da guerra.



COM CINCO LETRAS DE SANGUE


De súbito três tiros na memória.
Apagaram-se as luzes. Noite. Noite.
De súbito três tiros nas palavras
um poeta calou-se apagou-se a canção.

De súbito um poema foi bombardeado
um poeta fechou-se nas vogais
cercado por consoantes que talvez
caminhassem cantando para um verso.

Eram granadas? Eram sílabas de fogo?
E de súbito a guerra. Noite. Noite. E um poeta
com cinco letras escreveu no chão: porquê?
Com cinco letras do seu próprio sangue.
                                                                   Manuel Alegre

NÓS VOLTAREMOS SEMPRE EM MAIO

Amanhã não estaremos já neste lugar
amanhã a cidade já não terá o teu rosto
e a canção não virá cheia de ti
escrever em cada árvore o teu nome verde.

Amanhã outros passarão onde passámos
farão os mesmos gestos dirão as mesmas palavras
dirão um nome baixo um nome loucamente
como quem sobre a morte é por instantes eterno.

Amanhã a cidade terá outro rosto.
Nós não estaremos cá. Mas a cidade
já não será contra o amor amanhã
quando os amantes passarem na cidade livre.

Nós não estaremos cá. Voltaremos em maio
quando a cidade se vestir de namorados
e a liberdade for o rosto da cidade nós
que também fomos jovens e por ela e por eles
amámos e lutámos e morremos
nós voltaremos meu amor nós voltaremos sempre
no mês de Maio que é o mês da liberdade
no mês de Maio que é o mês dos namorados.

                                                                  Manuel Alegre

               


          
                    O CRISTO

Tinha os braços em cruz e o corpo “roixo”.
E um corvo negro poisava
nos ombros
daquele cristo.

Um cristo “roixo” poisava
nos ombros daquele corpo.
E tinha um corvo negro
na cruz dos braços.

Aquele cristo tinha um corvo
nos braços da cruz.
E o “roixo” poisava
nos ombros do corpo negro.

Tinha uma cruz nos braços.
E um corvo poisava no “roixo” dos ombros
daquele cristo
de corpo negro.

A cruz poisava
no “roixo” dos braços.
E tinha um corvo nos ombros
o corpo negro daquele cristo.

Poisava nos braços o “roixo”
do corvo nos ombros.
E tinha o corpo numa cruz
aquele cristo negro.
                                            Manuel Alegre


                       
                                     CORREIO ( Excerto )



Chegam cartas. Chegam pedaços
do meu país.
Chegam vozes. Chega um silêncio que me diz
as revoltas as lágrimas os cansaços.
Chegam palavras que me apertam nos seus braços.
Chegam notícias do meu país.

Chega o José o Alípio o Manel a Toina
chegam do sul e falam a cantar
chegam do norte e trocam os bês pelos vês
chegam mulheres descalças e homens de boina
chegam os antigos senhores do mar.
chega gente que chora em português.

Chegam palavras com guitarras de Lisboa
chegam palavras que me sentam à sua mesa
para falar das nossas coisas: trigo e tristeza.
Trevo e sal.
Chegam palavras que me trazem vinho e broa.
Chegam palavras que me trazem Portugal.
.....................................................................

Chegam palavras de ontem dentro das palavras de hoje.
O tempo nos constrói e nos destrói
vai-se o tempo Manel o tempo foge
Por vezes dói Manel por vezes dói.
E esta gente por dentro das palavras
esta gente que se junta que se junta
esta gente que chega e que pergunta
Que fazer? Que fazer? Só palavras?

                                                  Manuel Alegre

                LISBOA PERTO E LONGE


Lisboa chora dentro de Lisboa
Lisboa tem palácios sentinelas.
E fecham-se janelas quando voa
Nas praças de Lisboa – branca e rota
A blusa do seu povo – essa gaivota.

Lisboa tem casernas catedrais
Museus cadeias donos muito velhos
Palavras de joelhos tribunais.
Parada sobre o cais olhando as águas
Lisboa é triste assim cheia de mágoas.

Lisboa tem o sol crucificado
Nas armas que em Lisboa estão voltadas
Contra as mãos desarmadas –povo armado
De vento revoltado violas astros
- meu povo que ninguém verá de rastos.

Lisboa tem o Tejo tem veleiros
E dentro das prisões tem velas rios
Dentro das mãos navios prisioineiros
Ai olhos marinheiros – mar aberto
com Lisboa tão longe em Lisboa tão perto.

Lisboa é uma palavra dolorosa
Lisboa são seis letras proibidas
Seis gaivotas feridas rosa a rosa
Lisboa a desditosa desfolhada
Palavra por palavra espada a espada.

Lisboa tem um cravo em cada mão
Tem camisas que abril desabotoa
Mas em maio Lisboa é uma canção
Onde há versos que são cravos vermelhos
Lisboa que ninguém verá de joelhos.

Lisboa a desditosa a violada
A exilada dentro de Lisboa.
E há um braço que voa há uma espada.
E há na madrugada azul e triste
Lisboa que não morre e que resiste.

                                                           Manuel Alegre








                         Em ABRIL             JOSÉ GOMES FERREIRA!


DADOS QUE SÃO MEMÓRIAS DE UM POETA ALGO ESQUECIDO:
JOSÉ GOMES FERREIRA
José Gomes Ferreira nasce no Porto em 1900 e morre em Lisboa em 1985. No final da 2ª década de 1900, lançou os 1ºs livros de Poesia.
Dono de forte consciencialização política que se foi acentuando com o correr dos anos desde muito jovem, Gomes Ferreira “ tomado certo dia por um audacioso ímpeto revolucionário, queimou ,no Café Gelo,um retrato de Sidónio Paes” , pouco tempo antes de este ter sido vítima do atentado mortal na estação do Rossio em Lisboa. Concluída a Licenciatura em Direito , aos 24 anos, no ano seguinte inicia uma carreira como cônsul na Noruega, donde volta em 1930, abandonando inteiramente a carreira diplomática para se dedicar a tempo inteiro ao jornalismo. - As Palavras Escritas serão o seu Ofício e a sua Arte. Regressado a Portugal, colabora na “Presença”, “ Seara Nova”, “Imagem” (revista de cinema ) e “ Gazeta Musical e de Todas as Artes”.Com um talento e gosto pela música, quase tão fortes e reveladores quanto o da poesia: “De noite sentava-me ao piano/e às vezes improvisava o terror/das tempestades sem trovões nem vento./Com pena de não poder inventar outro instrumento/que, com rigor,/descesse até ao som mais fundo do silêncio.”, teve uma obra estreada e executada no Teatro Politeama, “ Idílio Rústico “.
Poeta de publicação tardia, encontramos na sua obra, influências diversas.
Ligando-se ao neo-realismo, sobretudo pelas intenções, José Gomes Ferreira assume-se plenamente como poeta militante. Significativo é o título de “Poeta Militante” ( 1977-78 ), dado ao conjunto da sua obra poética, revelador das suas grandes afinidades com o Neo-Realismo.José Gomes Ferreira equilibra-se instavelmente nos incidentes do quotidiano, sempre aberto aos voos de uma fantasia que por vezes se aproxima do surrealismo. Mas crescentemente empenhado na revolta que veio a assumir uma forte militância política, o poeta procura “ efeitos de uma aparente sensibilidade em reação espontânea, pela simplicidade do vocabulário, a atenção à naturalidade dos ritmos e pela sua disponibilidade permanente para um encontro mágico entre as palavras”.
Por volta de 1935 colabora com Fernando Lopes Graça no livro “ Marchas, Danças e Canções “ – uma extraordinária coletânea de poesias que, depois de musicadas, ficaram a ser conhecidas por “ Heróicas “ de que “ Não Fiques Para Trás, ò Companheiro” e o celebrizado, nos nossos dias, na Sessão da Assembleia da República já em 2013, “ Acordai !”, são alguns dos exemplos.
Mas foi só em 1948 que o poeta alcançaria definitivamente a notoriedade e o respeito junto dos leitores, dos críticos e dos académicos com a publicação de Poesia I e uma notável colaboração na Homenagem Poética a Gomes Leal.
Com Poesia III venceu o Grande Prémio da Poesia, da Sociedade Portuguesa de Escritores. Em 1978 – já depois da Revolução de Abril- José Gomes Ferreira lançou “ Poeta Militante I, II e III“.
Dois grandes estudiosos da Literatura Portuguesa, António José Saraiva e Óscar Lopes, na “ História da Literatura Portuguesa”, escreveram que J.G. Ferreira foi “o porta-voz de um sentimento de remorso e responsabilização do intelectual por todas as brutalidades e injustiças, pelo drama colectivo pelas últimas cinco décadas do século XX em Portugal “.
Para além de ter produzido uma extensa e qualificada obra literária – dez obras de ficção, dois livros de crónicas e outros tantos de contos, cinco volumes de memórias e de diários e onze de estudos/ensaios – José Gomes Ferreira, nunca deixou de participar nos grandes momentos democráticos e antifascistas do período anterior à Revolução.
Foi agraciado pelo presidente Ramalho Eanes com o grau de Grande Oficial da Ordem Militar de Santiago de Espada e, anos mais tarde, - uma vez avaliado o seu percurso na luta pela liberdade e na defesa da democracia – o poder instituído conferiu-lhe a Ordem da Liberdade.

*( Principais Fontes consultadas: Vasco Graça Moura ( Antologia da Poesia Portuguesa, da Porto Editora ) e História da Literatura Portuguesa, de Òscar Lopes e António José Saraiva .





POEMA XXVIII de ENCRUZILHADA ( 1949-1950 )

Só por orgulho te aceito.

Vem
Com a lama desse jeito
Que há na terra do corpo das mulheres
- e estende no meu leito
O chão de malmequeres.

Vem
Com essa chama
Que mutila o sol de outros segredos
- e alonga na minha cama
O suor dos trevos.

Vem,
Meu deserto,
Que só longe
( na morte )
Sinto mais perto.




De “ ENCRUZILHADA” ( 1949-1950 )
Poema XXIII

Uma voz chamou por mim.

Voltei-me.
Não era ninguém.

Ou talvez fosse aquela pedra com o sonho dentro
Tão pisada na carne de ouvi-la gemer sempre.

Ou a nuvem azul da tua imagem
Deitada na sombra de dormir a meus pés.

Ou tu talvez dentro de mim
A querer arrastar-me para a dimensão
Do outro céu subterrâneo
Com estrelas negras debaixo do chão.

Ouvi o meu nome.

Voltei-me.
Não era ninguém.
( eras tu. )


O vento acariciou-me.





Dulcineia, Dulcineia

Poema de José Gomes Ferreira (A Morte de D. Quixote, in Poeta Militante / Viagem do Século Vinte em Mim - 1º volume, 1977)
Música de Manuel Freire (arranjo Coro da Achada)

Dulcineia, Dulcineia,
volte ao que era:
uma plebeia
sem primavera

Volte aos redis,
coberta de chagas
- sem espuma em gomis
nem brilho de adagas.

Volte ao que foi,
pois ainda conserva
um cheirinho a boi,
um cheirinho a erva...

Volte a apanhar pinhas
e bosta para os fornos.
E a tanger cabrinhas
com flores nos cornos.

Volte a andar de gatas
como os outros bichos...
E esqueça as serenatas
aos seus caprichos.

Esqueça o castelo
onde os donzéis
se batiam em duelo
à século XVI...

E volte à aldeia
da sua labuta.

Dulcineia, Dulcineia,
deixe de ser Ideia
e torne-se a carne e a alma
da nova luta.


Acordai


Acordai
acordai
homens que dormis
a embalar a dor
dos silêncios vis
vinde no clamor
das almas viris
arrancar a flor
que dorme na raíz

Acordai
acordai
raios e tufões
que dormis no ar
e nas multidões
vinde incendiar
de astros e canções
as pedras do mar
o mundo e os corações

Acordai
acendei
de almas e de sóis
este mar sem cais
nem luz de faróis
e acordai depois
das lutas finais
os nossos heróis
que dormem nos covais
Acordai!







HOJE ACORDEI NA DISPERSÃO CINZENTA
( de Poesia III )

Hoje acordei na dispersão cinzenta
dum dia decepado…com o corpo dividido
as imagens sem olhos,
os gestos a fugirem-me dos dedos
- e a sombra esquecida no quarto ao lado.

Desatado de mim,
andei todo o dia assim
com os passos nas nuvens,
os pés na terra,
as mãos a estrangularem o nevoeiro
e os olhos…Ah! Os meus olhos onde estão ?



POEMA XVIII de “ NORUEGA” ( 1964-1965 )


E ali ficávamos os dois
A aquecer as mãos de fantasmas ao lume
Do princípio de Abril.

Os dois ?
Mas tu quem eras?

O que hoje penso de ti para seres perfume
- ou o que resta da sombra do teu perfil ?









POEMA XX de “NORUEGA “ ( 1964-1965 )


Foi Euridice
Quem apagou voluntariamente o inferno
E de facho na mão
Voltou à Terra
Em busca de Orfeu…

que entretanto
Crendo a mulher morta para sempre,
Adormeceu
Ao som do próprio canto.

E agora
Bem viva, com a morte por intervalo,
Euridice, a triste que não chora,
Tenta em vão acordá-lo.




BALADA DUMA HEROÍNA QUE EU INVENTEI
José Gomes Ferreira

Vais morrer com a saia rota,
sem flores nos cabelos…
- Mas isso que importa
se depois de morta
até as mãos da terra
hão-de florescê-los ?

Vais morrer de blusa no fio,
sem laços nas tranças…
- Mas isso que importa
se depois de morta
até as mãos do Frio
penteiam as crianças?

Vais morrer espantada na rua,
sem fitas nos caracóis…
- Mas que importa
se depois de morta
até as mãos da lua
enfeitam os heróis ?

Vais morrer a cantar numa esquina,
de sapatos velhos…
- Mas isso que importa
se depois de morta
continuarás a ser a menina
que nunca teve espelhos ?

Vais morrer com olhos de águia presa
e meias de algodão…
- Mas isso que importa
se depois de morta
a tua beleza
não caberá num caixão.
E há-de rasgar a terra
e romper o chão
como uma primavera
de lágrimas acesa
que os homens atiram, em vão,
para a natureza ?










.............MARÇO...........


MARIA TERESA HORTA


Nasce em Lisboa em 1938, no seio de uma família aristocrática pelo lado materno – a mãe é descendente da notável poetisa do século XVIII, Marquesa de Alorna -.e filha do Catedrático de Medicina e cientista de renome, Profº Jorge Horta.
Frequenta a Faculdade de Letras de Lisboa e abandona-a para se tornar jornalista, sua grande paixão. Ao mesmo tempo cultiva o cineclubismo, tendo sido directora do ABC Cine-Clube de Lisboa.
Integra-se no grupo Poesia 61, mas cedo se afirmou avessa a obediências, fossem de que tipo fossem.
Tornou-se famosa pelo escândalo surgido em 1971 em torno das Novas Cartas Portuguesas que, assinadas também por Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa, as fez ficarem conhecidas como “As Três Marias” e as levou a tribunal.
Colaboradora em inúmeras publicações, em todos os escritos traz à luz a bandeira das suas convicções sobre a emancipação feminina.
Esta luta foi também, desde sempre, o seu combate na ficção e na poesia, onde apela a uma nova maneira de ser mulher e faz vibrar uma fortíssima e invulgar pulsão erótica.
Autora de poemas de intensa sugestão amorosa e erótica, “de expressão inflamada do desejo físico, do prazer sexual, de presença táctil, gustativa e sensual dos corpos antes, durante e depois do amor”.
Na formulação metafórica, na franqueza sem eufemismos, na simplicidade imediata do léxico, no ritmo, na sonoridade musical de rimas”, Maria Teresa Horta abriu, desde a década de 60, novos caminhos à poesia de amor em Portugal.
Estreou-se em 1960 com um livro de poesia intitulado “ Espelho Inicial”. Entre outros, publica em 1984 “ Minha Mãe, Meu Amor”.
Ajudou a lançar e dirigiu até ao fim, a Revista “Mulheres”, que já pós-25 de Abril é uma voz forte, impulsionadora, abordando os temas da mulher, para que possa haver um caminhar mais justo e equitativo da sociedade.
Em 2011 lança “ As Luzes de Leonor”, estudo envolvente da poetisa/trisavó Marquesa de Alorna inserindo no século das Luzes o Portugal do século XVIII.
Com este livro recebe o Prémio D.Diniz desse ano, prémio esse que aceita receber, recusando no entanto fazê-lo das mãos de Passos Coelho.



MORRER DE AMOR
Maria Teresa Horta
Morrer de amor
ao pé da tua boca
Desfalecer
à pele
do sorriso
Sufocar
de prazer
com o teu corpo
Trocar tudo por ti
se for preciso.

JOELHO
Ponho um beijo
demorado
no topo do teu joelho
Desço-te a perna
arrastando
a saliva pelo meio
Onde a língua
segue o trilho
até onde vai o beijo
Não há nada
que disfarce
de ti aquilo que vejo
Em torno um mar
tão revolto
no cume o cimo do tempo
E os lençóis
desalinhados
como se fosse
de vento
Volto então ao teu
joelho
entreabrindo-te as pernas
Deixando a boca 
faminta
seguir o desejo nelas
MINHA SENHOR DE MIM
Comigo me desavim
minha senhora
de mim
sem ser dor ou ser cansaço
nem o corpo que disfarço
Comigo me desavim
minha senhora
de mim
nunca dizendo comigo
o amigo nos meus braços
Comigo me desavim
minha senhora
de mim
recusando o que é
desfeito
no interior do meu peito.
(Minha Senhora de Mim, 1971 )
Poema sobre a recusa
Ler Mais Ler Melhor Vida e Obra de Maria Teresa Horta

SEGREDO
Não contes do meu
vestido
que tiro pela cabeça
nem que corro os
cortinados
para uma sombra mais espessa
Deixa que feche o
anel
em redor do teu pescoço
com as minhas longas
pernas
e a sombra do meu poço
Não contes do meu
novelo
nem da roca de fiar
nem o que faço
com eles
a fim de te ouvir gritar

1 comentário:

  1. Excelente trabalho da dinâmica e diversificada artista Ana Patacho. Parabens, continue.
    Um abraço da maior admiração,
    António Pena.

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