POETA DO MÊS DE SETEMBRO
O “ Diário”, que publicou de1941 a 1993, retrata o
pulsar do autor sobre o Homem, o Mundo e a Vida.
ARIANE
Carregado de sonho, fundeou
Lisboa, Cadeia do Aljube, 1
de Janeiro de 1940
Morreu em 1995, apenas a dois anos de completar 90 anos de idade.
FÁBULA DA FÁBULA
Agora
retrocedo, leio os versos,
DIES IRAE
Apetece cantar, mas ninguém
canta.
QUASE
UM POEMA DE AMOR
“O Homem é, por desgraça, uma Solidão:
nascemos
sós, vivemos sós
e morremos sós "
Miguel Torga nasce em 1907,
em plena serra transmontana, perto de Vila Real, mais propriamente em São Martinho de Anta,
terra de fragas escarpadas, ervas bravias e serranias agrestes e duras como o
granito de que são feitas.
De seu nome Adolfo Rocha,
quando já era médico e começara a publicar os seus primeiros livros, sendo um homem
de fortes convicções, mudou-o para Miguel Torga.
É curioso perceber porque o
fez:
Miguel, em homenagem a dois
grandes vultos das Letras mas acima de tudo dois homens de uma postura ética impoluta:
Miguel Cervantes e Miguel de Unamuno;
Torga, designação nortenha da urze,
planta brava da montanha, que deita raízes fortes sob a aridez da rocha.
Em 1934, “ A Terceira Voz” é
publicada por Miguel Torga, com prefácio de Adolfo Rocha (“…dou a minha palavra
de honra que não reapareço…”).O “ Diário”, que publicou de
Torga foi uma das referências
culturais do povo português
que começava a ver no poeta um símbolo pátrio da
resistência ao salazarismo.
Miguel Torga
Ariane é um navio.
Tem mastros, velas e bandeira
à proa,
E chegou num dia branco,
frio,
A este rio Tejo de Lisboa.
Dentro da claridade destas
grades...
Cisne de todos, que se foi,
voltou
Só para os olhos de quem tem
saudades...
Foram duas fragatas ver quem
era
Um tal milagre assim: era um
navio
Que se balança ali à minha
espera
Entre gaivotas que se dão no
rio.
Mas eu é que não pude ainda
por meus passos
Sair desta prisão em corpo
inteiro,
E levantar a âncora, e cair
nos braços
De Ariane, o veleiro.
No entanto, nunca se filiou
em partido algum: “ É escusado. Não
posso ter outro partido senão o da
Liberdade. O meu partido é o mapa de Portugal”.
Dele disse Jorge Amado:” Se
existe alguém que escreve em português e merece o Nobel é Miguel Torga, não
eu”.
Foi proposto para o prémio
Nobel em 1960. Sem êxito. Possivelmente por interferência do Poder de então.
No entanto, uns anos mais
tarde, voltará a ser considerado candidato.
Morreu em 1995, apenas a dois anos de completar 90 anos de idade.
FÁBULA DA FÁBULA
Era uma vez
uma fábula famosa,
alimentícia
e moralizadora,
que, em verso e prosa,
toda a gente
inteligente,
prudente
e sabedora
repetia
aos filhos,
aos netos
e aos bisnetos.
À base duns insectos,
De que não vale a pena fixar
o nome,
A fábula garantia
que quem cantava
morria
de fome.
E, realmente...
Simplesmente,
enquanto a fábula contava,
um demónio secreto segredava
ao ouvido secreto
de cada criatura.
( Miguel Torga )
POEMA
MELANCÓLICO A NÃO SEI QUE MULHER
Dei-te
os dias, as horas e os minutos
destes
anos de vida que passaram;
nos
meus versos ficaram
imagens
que são máscaras anónimas
do
teu rosto proibido;
a
fome insatisfeita que senti
era
de ti,
fome
do instinto que não foi ouvido.
conto
as desilusões no rol do coração,
recordo
o pesadelo dos desejos,
olho
o deserto humano desolado,
e
pergunto porquê, por que razão
nas
dunas do teu peito o vento passa
sem
tropeçar na graça
do
mais leve sinal da minha mão...
( Miguel Torga )
BUCÓLICA
A vida é feita de nadas:
de grandes serras paradas
à espera de movimento;
de searas onduladas
pelo vento;
de casas de moradia
caídas e com sinais
de ninhos que outrora havia
nos beirais;
de poeira;
de sombra de uma figueira;
de ver esta maravilha:
me pai a erguer uma videira
me pai a erguer uma videira
como uma mãe que faz a trança
à filha.
( Miguel Torga )
DIES IRAE
Apetece chorar, mas ninguém
chora.
Um fantasma levanta
A mão do medo sobre a nossa hora.
Apetece gritar, mas ninguém
grita.
Apetece fugir, mas ninguém
foge.
Um fantasma limita
Todo o futuro a este dia de
hoje.
Apetece morrer, mas ninguém
morre.
Apetece matar, mas ninguém
mata.
Um fantasma percorre
Os motins onde a alma se
arrebata.
Oh! Maldição do tempo em que
vivemos,
Sepultura de grades
cinzeladas,
Que deixam ver a vida que não
temos
E as angústias paradas!
( Miguel Torga )
QUASE
UM POEMA DE AMOR
Há muito tempo já
que não
escrevo um poema
de amor.
E é o que sei fazer com mais
delicadeza!
A nossa natureza
lusitana
tem essa humana
graça
feiticeira
de tornar de cristal
a mais sentimental
e baça
bebedeira.
Mas ou seja que vou
envelhecendo
e ninguém me deseje
apaixonado,
ou que a antiga paixão
me mantenha calado
o coração
num íntimo pudor,
há muito tempo já que não
escrevo um poema
- De amor!
( Miguel Torga )
TORMENTA
Miguel Torga
Noite medonha, aquela!
O mar tanto engolia a caravela
como a exibia à tona, desmaiada!
No abismo do céu nem uma estrela!
E a cruz de Cristo, a agonizar na vela,
suava sangue sem poder mais nada!
A fúria cega dum tufão raivoso
vinha das trevas desse Tenebroso
e varria a quimera do convés…
O mastro grande que Leiria deu
era um homem de pinho, mas caiu
quando um raio o abriu de lés a lés…
Novo guarda dos rumos da Nação,
o piloto guiava a perdição
como um pai os destinos do seu lar…
Até que o lar inteiro se desfez.
Até que ao pai chegou também a vez
de fazer uma prece e descansar…
O gajeiro sem gávea, dessa altura
que a alma atinge ao rés da sepultura,
olhou ainda a bruma em desafio…
Mas a Sereia Negra, que cantava
no coração do mar, tanto chamava,
que ele deu-lhe aquele olhar cansado e frio.
O naufrágio alargou-se ao mar inteiro.
E o corpo morto dum herói, primeiro
cruzado da unidade deste mundo,
no dorso frio duma onda irada,
mandou aos mortos, com a mão na espada,
boiar o sonho, que não fosse ao fundo.
POETA DO MÊS DE AGOSTO
JOSÉ RÉGIO
Casa de José Régio em Vila do Conde
PORTALEGRE
Nasceu em Vila do Conde, em
1901, mas quase toda a sua vida adulta, foi vivida em Portalegre, onde foi
professor liceal desde 1929.
E nesta cidade reuniu uma
valiosa colecção de iconografia religiosa, conservada em sua casa, à sua morte
transformada em museu.
Pseudónimo de José Maria dos
Reis Pereira, José Régio é um escritor fundamental da história da literatura
portuguesa. Sendo um dos fundadores em
1927 da revista” “Presença”, depressa se impôs como o principal
mentor do movimento “ presencista”, criando uma nova postura estética e ética
que
dominou o panorama nacional durante longos anos.
É talvez o mais bem
apetrechado artista do verso do primeiro núcleo dirigente da Presença.
Como poeta, é o que melhor
sabe alcançar efeitos estilísticos de poderoso recorte expressionista e de bem
timbrada musicalidade, o que mais argutamente conhece e consegue reelaborar a
grande tradição literária portuguesa, o que leva mais longe os processos
introspectivos, enfim, o que se implicou mais profundamente num diálogo com os
processos do primeiro Modernismo, sobretudo na zona em que os seus autores
foram mais capazes de dramatizar as contradições do “eu”, como nos casos de
Pessoa e Sá-Carneiro.
ÍCARO
A minha Dor, vesti-a de brocado,
fi-la cantar um choro em melopeia,
ergui-lhe um trono de oiro imaculado,
ajoelhei de mãos postas e adorei-a.
Por longo tempo, assim fiquei
prostrado,
moendo os joelhos sobre lodo e areia.
E as multidões desceram do povoado,
que a minha Dor cantava de sereia…
Depois, ruflaram alto asas de agoiro!
Um silêncio gelou em derredor…
e eu levantei a face, a tremer todo:
Jesus! Ruíra em cinza o trono de
oiro!
E, misérrima e nua, a minha Dor
ajoelhara a meu lado sobre o lodo.
( “ Poemas de Deus e do Diabo “ )
LIBERTAÇÃO
Menino doido, olhei em roda, e vi-me
Fechado e só na grande sala escura.
( Abrir a porta, além de ser um
crime,
era impossível para a minha altura…)
Como passar o tempo?...e diverti-me
desta maneira trágica e segura:
pegando em mim, rasguei-me, abri,
parti-me,
desfiz trapos, arames, serradura…
Ah, meu menino histérico e precoce!
Tu, sim! Que tens mãos trágicas de
posse,
e tens a inquietação da Descoberta!
O menino, por fim, tombou cansado;
o seu boneco aí jaz esfarelado…
e eu acho, não sei como, a porta
aberta!
( “ Poemas de Deus e do Diabo” )
NARCISO
Dentro de mim me quis eu ver. Tremia,
dobrado em dois sobre o meu próprio
poço…
Ah, que terrível face e que arcabouço
este meu corpo lânguido escondia!
Ó boca tumular, cerrada e fria,
cujo silêncio esfíngico eu bem
ouço!...
Ó lindos olhos sôfregos, de moço,
numa fronte a suar melancolia!...
assim me desejei nestas imagens.
Meus poemas requintados e selvagens,
o meu Desejo os sulca de vermelho:
que eu vivo à espera dessa noite
estranha,
noite de amor em que me goze e tenha,
…lá no fundo do poço em que me
espelho!
( “ Poemas de Deus e do Diabo” )
O MANEQUIM
Quando Hamlet, Grã Senhor predestinado,
ressuscitou em mim sua Loucura,
quis eu, para o trazer de braço dado,
modernizar-lhe o espírito e a figura:
pondo-lhe um riso frígido e afiado
nos lábios retorcidos de amargura,
modelei-o num fraque bem talhado
que lhe vincasse os gestos e a estatura.
Depois lhe abri o enigma da Ironia
para que a sua atroz melancolia
calçasse luvas…e ostentasse o ar fino.
Hoje, ó meu Grande! Ó Príncipe de todos!
Já te posso exibir: tens belos modos,
e sofres…mas consoante o figurino.
MÚSICA LIGEIRA
Música ligeira,
grácil melodia
que sobes de à
beira
da melancolia,
já foste a primeira, sê-me a
derradeira
liberdade viva da voz
prisioneira.
Viração,
aragem,
brisa…, vens de abismos,
filha do
selvagem
frémito dos
sismos,
e ganhas, ao longo da sinuosa viagem,
frescor das paisagens, névoas da
miragem…
Clara e
densa, lanças
a
ondulante frase
que evoca
lembranças
quase amargas,
quase,
pérfida menina que, de
falas mansas,
se fira, sorrindo e desatando as
tranças…
Música intimista
que, sem
pretendê-lo,
fundo se
entrevista
com o pesadelo,
transmuta-me em fogos e jogos de
artista
quanto peso e sombra
caem já na pista!
( José Régio )
****
É como poeta que se destaca –
embora tendo escrito também Teatro, Romances e Novelas
QUINTA-FEIRA SANTA
O Cristo, ao alto, alonga os
magros braços nus
por sobre a escuridão do
rancho desolado
que segue, ao som da marcha,
o seu Jesus,
por nós crucificado.
Pendente da cruz negra,
envolto em luar frio,
tremendo, ao baloiçar do seu
pesado andor,
no corpo nu perpassa um
arrepio
de carne e de terror…
E, vivo ainda, o Cristo
espasma e agoniza,
e avança, ao avançar da lenta
procissão…
a lua é uma auréola indecisa
molhando a multidão.
À frente, já lá vão,
sangrentos, mais Senhores,
sangrentos, e poisando
subtilmente os pés feridos
nos ricos panos roxos dos
andores,
entre círios erguidos.
Senhor
da Cana Verde erguendo o olhar absorto,
( Verónica sem par! Deus
feito pele e osso! )
seu ceptro da Paixão nas mãos
de morto,
sua púrpura ao pescoço.
Senhor
da Pedra Fria ao poste acorrentado,
com pálpebras sem luz pesadas
como noites,
o corpo retalhado e tatuado
dos beijos dos açoites.
Senhor
dos Passos indo a via da Amargura,
de túnica aos rasgões mas
toda em seda roxa,
e oculta sob a Cruz, a face
escura
pesando lassa e frouxa…
E as tochas, e os brandões, e
as opas mortuárias
desfilam devagar, fantasmas
desfilando…
as criancinhas levam
luminárias,
a marcha vai penando.
Crianças a sorrir no enterro
de Jesus!...
( Nas luminárias, sobre
fundos amarelos,
trazem toda a Paixão: a
esponja, a cruz,
os cravos, os martelos…)
E eu sinto, agora, um mundo
contra o peito,
e olhando o Cristo, ao som da
marcha de aflição,
vou, cheio de soluços,
contrafeito
entre esta multidão.
Toda a emoção doentia,
obscura e torturada
que fez de mim Poeta irrompe
e vibra…Coro,
gozando essa volúpia
inesperada
de reparar que choro.
Que bom, poder chorar só por
amar!
E olhando o roxo azul dos
seus joelhos nus,
medito em me ir também
crucificar
nos braços duma Cruz!
A ti me atrai, Jesus, mais
forte que um abismo,
a chama desse amor que a fogo
lento coze
as virgens desvairadas de
histerismo
e os santos de nevrose.
Mas o que eu amo em ti,
divino Cristo exangue,
é o que em ti é Dor, e assim
a nós te irmana:
teu sonho imenso, o teu suor
de sangue,
a tua carne humana…
E o Cristo avança, à lua,
esplêndido e chagado.
Jesus, Deus da Paixão, sim,
amo-te, Jesus!
Oh, ser, por teu amor,
crucificado
na tua mesma Cruz!...
Por isso choro em mim a mágoa
verdadeira
de ter nascido tarde, e só te
vir achar,
feito em marfim, metal,
pedra, madeira,
no cimo dum altar!
E enquanto a marcha expira,
além, num estertor,
e o magro Cristo nu vai a
desaparecer,
deliro, e sofro, e gozo a
minha Dor
- Meu último Prazer!
SONETO DE AMOR
Não me peças palavras, nem baladas,
nem expressões, nem alma… abre-me o
seio,
deixa cair as pálpebras pesadas,
e entre os seios me apertes sem
receio.
Na tua boca sob a minha, ao meio,
nossas línguas se busquem,
desvairadas…
e que os meus flancos nus vibrem no
enleio
das tuas pernas ágeis e delgadas.
E em duas bocas uma língua… - unidos,
nós trocaremos beijos e gemidos,
sentindo o nosso sangue misturar-se.
Depois… - abre os teus olhos, minha
amada!
Enterra-os bem nos meus; não digas
nada…
deixa a Vida exprimir-se sem
disfarce!
( José Régio )
****
– e atinge larga
audiência, sendo a sua poesia marcada por uma introspecção constante que põe em
cena os conflitos entre Deus e o Homem, o espírito e a carne, o indivíduo e a
sociedade.
Estreando-se com o livro “ Poemas de Deus e do Diabo “ em 1925,
com muitas edições até aos dias de hoje, desde logo se afirmou como “uma voz
única, que tem na irreverente independência criadora do poema “Cântico Negro” um sinal da sua actualidade, ao ponto do seu “…não vou por aí! “ ter entrado
na linguagem comum “, no que
será um dos casos raros na nossa história literária.
“…Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
mas eu, que nunca principio nem acabo,
nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: “ vem por aqui “!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou…
Não sei por onde vou,
não sei para onde vou,
- Sei que não vou por aí!”.
O PAPÃO
Atrás da porta, erecto e
rígido, presente,
ele
espera-me. E por isso eu me atrapalho
e vou pisar, exactamente,
a sombra d’ele no soalho!
- “ Senhor Papão!
( gaguejo eu )
“ Deixe-me ir dar a minha
lição!
“ Sou professor no liceu…”
Mas o seu hálito
marcou-me, frio como o fio
duma espada.
E eu saio pálido,
com a garganta fechada.
Perguntam-me, lá fora: - “ Estás
doente?”
- “ Não! ( grito-lhes
)…porquê?! “ E falo e rio, divertindo-me.
Ora o pior é que há palavras
em que eu paro, de repente
e que me doem, doem,
prolongando-se e ferindo-me…
então, no ar,
levitando-se, enorme, e
subvertendo tudo,
ele faz frio
e luz como um luar…
e eu ouço-lhe o riso mudo!
- “ Senhor Papão!
( gaguejo eu ) por quem é,
“ Deixe-me estar aqui, nesta
reunião,
“ Sentadinho, a tomar o meu
café!...”
Mas os mínimos gestos e
palavras do meu dia
ficaram cheios de sentido.
Ter demais que dizer – ah!
que massada e que agonia!
É natural que eu seja
repelido.
Fujo. E na minha mansarda,
eu torno: “ – Senhor Papão!
“ Se é o meu Anjo da Guarda,
“ Guarde-me, mas de si! Da
vida, não.”
O seu olhar, então, fuzila
como um facho.
Suas asas sem fim vibram no
ar como um açoite…
E até no leito em que eu me
deito o acho,
E nós lutamos toda a noite.
Até que vencido, imbele
ante o esplendor da sua face,
eu, de repente, beijo o chão
diante d’ele,
reconhecendo o seu disfarce.
E rezo-lhe: “ – Meu Deus! Perdão: Senhor Papão!
“ Eu não sou digno desta
guerra!
“ Poupe-me à sua Revelação!
“ Deixe-me ser cá da terra! “
Quando uma súbita miragem
me faz ver, ( truque já
velho!...)
que estou em frente do
espelho,
ante a minha própria imagem.
A JAULA E AS FERAS
José Régio
Centos de doidos vivem nesse hospício
( Quem no diria, olhando cá de
fora…?! )
e o portão dança já no velho quício,
dança, e faz entrar mais a toda a
hora.
Trazem todos um sonho, um crime, um
vício,
foram imperadores longe, outrora,
e em seus rostos de espanto ou de
flagício
não sei que ausência atroz se
comemora.
Faz medo e angústia olhá-los bem nos
olhos;
e, lá por trás de grades e ferrolhos,
estoiram de ansiedade desmedida.
- Meu corpo, ó meu hospício de
alienados!
Abre-te aos meus desejos enjaulados,
deixa-os despedaçar a minha vida!
EPITÁFIO PARA UM POETA
As asas não lhe cabem no caixão!
A farpela de luto não condiz
com seu ar grave, mas, enfim, feliz;
a gravata e o calçado também não.
Ponham-no fora e dispam-lhe a farpela!
Descalcem-lhe os sapatos de verniz!
Não vêem que ele, nu, faz mais figura,
como uma pedra, ou uma estrela?
Pois atirem-no assim à terra dura,
ser-lhe-á conforto:
deixem-no respirar ao menos morto!
( “Filho do Homem”, 1961 )
Entre Deus e o Diabo – o dualismo
-, é o clima ambiente da poesia, da obra e do autor de “ As Encruzilhadas de Deus “.
Dualismo que, começando por
ser religioso, se estendeu depois, também, a outros temas, os quais, por isso
mesmo, não deixam de levar o sinal da origem; dualismo que não é redutor, mas
sim “ um dualismo de luta e de
combate, um dualismo polémico: do mesmo ao mesmo através do diverso.”
“ Neste e deste universo de
constante e eterno retorno se nutre o fatalismo de José Régio – tudo é fado -, a afirmação de que a liberdade é uma ilusão de liberdade.
FADO PORTUGUÊS
O fado nasceu num dia
em que o vento mal bulia
e o céu o mar prolongava,
na amurada dum veleiro,
no peito dum marinheiro
que estando triste, cantava.
(- Saudades da terra firme,
da terra onde o mar acabe,
da casinha e das mulheres,
guitarra vem assistir-me,
que a gente é bruto e não sabe,
expressa-as tu, se souberes…)
Por esse mar além fora,
a guitarra, dim…dom, chora,
tem pausas, ais e soluços.
E tão bem faz isso à gente,
que o triste bruto valente
chora sobre ela de bruços!
(- Mãe, adeus! Adeus Maria!
Guarda bem no teu sentido
que aqui te faço uma jura
que ou te levo à sacristia,
ou foi Deus que foi servido
dar-me no mar sepultura!)
Por mar além, chão que treme,
o dim-dom da corda freme
de espanto, angústia,
incerteza;
mas reluz no olhar do triste
não sei que alto apelo em
riste
contra essa humana fraqueza…
(- Que terra é esta…, este mar
que só acaba nos céus,
ou nem lá tem sua fim?...
ou hei-de-o eu acabar,
ou hei-de, querendo Deus!,
Ou ele acabar a mim!)
Casada à trémula corda,
sobe a voz trémula…,acorda
tristezas do peito inteiro,
e as sereias que enlevadas
se agarram às amuradas
do frágil barco veleiro.
(- Ai que lindeza tamanha,
meu chão, meu monte, meu vale,
de folhas, flores, frutos de ouro!
Vê se vês terras de Espanha,
areias de Portugal,
olhar ceguinho de choro…)
Deitando o olhar às lonjuras,
só vê funduras, alturas
das águas, dos céus, da
bruma,
e as rijas pomas redondas,
de bico a boiar nas ondas,
das sereias cor da espuma.
(- Sei eu, sequer, por que venho,
deixando a jeira de chão
que ao menos me não fugia,
atrás de não sei que tenho
tão dentro do coração
que inté julguei que existia…?)
E à voz que sobe a tremer,
morre lá longe…,e ao morrer,
sobe outra vez, mais se
aferra,
que etéreo coro responde
de vozes que chegam de onde
não seja nem mar nem terra!
(- quem canta com voz tão benta
Que ou são-nos anjos nos céus
Ou é demónio a atentar?
Se é demónio, não me atenta,
Que a minh’alma é só de Deus,
O corpo, dou-o eu ao mar…)
Na boca do marinheiro
do frágil barco veleiro,
morrendo, a canção magoada
diz o pungir dos desejos
do lábio a queimar de beijos
que beija o ar, e mais nada.
(- Mãe, adeus! Adeus, Maria!
Guarda bem no teu sentido
que aqui te faço uma jura
que ou te levo à sacristia,
ou foi Deus que foi servido
dar-me no mar sepultura!)
Sob o alvor da lua cheia,
naquela noite, a sereia
cujo seio mais se enrista
da aurora até ao sereno
beijou o corpo moreno
do moço nauta fadista…
(- que terra é esta…,este mar
que só acaba nos céus,
ou nem lá tem sua fim?...
Ou hei-de-o eu acabar,
ou hei-de, querendo Deus!;
Ou ele acabar a mim!)
Nas vias lácteas faiscantes
que esmigalhado em diamantes
o luar no mar espraia,
um dim-dom…,dim-dom tremente,
mais doces queixas de gente,
vão ter a uma certa praia.
(- Ai que lindeza tamanha,
meu chão, meu monte, meu vale,
de folhas, flores, frutos de ouro!
Vê se vês terras de Espanha,
Vê se vês terras de Espanha,
areias de Portugal,
olhar ceguinho de choro…)
E as mães de filhos ausentes
acordam batendo os dentes,
torcendo as mãos, e carpindo,
sabendo todas que é a morte
que chega daquela sorte
no luar funéreo e lindo…
Ora eis que embora, outro
dia,
quando o vento nem bulia
e o céu o mar prolongava,
à proa doutro veleiro,
velava outro marinheiro
que estava triste e cantava.
( José Régio )
Escritor polimórfico,* é uma das figuras cimeiras das
letras portuguesas do século XX. Dotado de grande poder de visualização, soube
captar o dramatismo quer do seu mundo interior “ de aspirações multiformes mas
anárquicas, intencionadoras do absoluto, quer da condição humana, nas suas
contradições labirínticas e na vertigem das suas oscilações entre as alturas e os abismos,
sentindo mais a inquietação que a fome da Eternidade “. NOTA: * - Que se apresenta de diversas formas.
O POETA DOIDO, O VITRAL E A SANTA MORTA
estava
certo cadáver duma Santa
que fora embalsamada há muitos séculos...
E a Santa que o esperava,
despertou,
e, sorrindo-se e curvando-se, beijou
a cabeça degolada.
O POETA DOIDO, O VITRAL E A SANTA MORTA
de José Régio
Era
uma vez um Poeta
que
vivia num Castelo,
num
Castelo abandonado,
povoado
só de medos...
-
Um Castelo com portões que nunca abriam,
e
outros que abriam sem ninguém os ir abrir,
e
onde os ventos dominavam,
e
donde os corvos saíam,
para
almoços
que
faziam
de
mendigos que caíam lá nos fossos...
Havia
no Castelo, ao fim dum corredor,
(
Um corredor grande, grande,
frio,
frio,
com
abóbodas sonoras como poços )
um
vitral.
Era
um vitral singular...
e é
bem verdade que ninguém sabia
o
que ele ali fazia,
ao
fim daquele corredor,
naquela
parede ao fundo,
aquele
vitral baço e quase já sem cor.
Nem
o Poeta o sabia...
Nem
o Poeta o sabia,
muito
embora noite e dia
meditasse
no
vitral quase sem cor
que
estava pra ali na sombra
do
fundo do corredor
-
Com ar de quem aguardasse...
Quando,
a meio da noite, o Poeta acordava,
levantava-se
e, até dia, delirava.
Era
a hora do Medo...
E
passeava, delirando, pelos longos corredores,
descia
as escadarias,
corria
as salas.
Sob
os seus pés, as sombras deslizavam.
Pelos
recantos, os fantasmas encolhiam-se.
E,
devagar, bem devagar, no escuro,
portões
abriam-se, e fechavam-se, e giravam sem rumor.
O
Poeta só parava
Diante
do tal vitral,
Ao
fim o tal corredor...
E
sonhava.
Sonhava
que, para lá
daqueles
doirados velhos,
daqueles
roxos mordidos,
que
morriam
sobre
o fundo espesso e negro,
havia...
Mas
que haveria?
Qualquer
coisa bem ao perto
que
o chamava de tão longe...!
E,
mudo, ali ficava até ser dia,
Enquanto
os ventos, lá fora,
fingiam
mortos a rir...
Enquanto
as sombras passavam...
Enquanto
os portões rodavam,
sem
ninguém os ir abrir!
Mas,
um dia,
-
eis, ao menos o que dizem –
o
Poeta endoideceu.
E,
fosse Deus que o chamasse
ou
o Diabo que lhe deu,
(
não sei... )
Sei
que uma noite, a horas desconformes,
o
Doido alevantou-se nu e lívido,
com
os cabelos soltos e revoltos,
a
boca imóvel como as das estátuas,
os
olhos fixos, sonâmbulos, enormes...
Pegou
no archote,
desceu,
escada a escada, a muda escadaria,
seguiu
pelo corredor.
Em
derredor,
as
sombras doidas esvoaçavam contra os muros.
Lá
muito longe, o vento era um gemido que morria...
Ao
fim do tal corredor,
havia
o
tal vitral.
E,
de golpe,
como
dum voo em linha recta,
o
Poeta-Doido ergueu-se contra ele,
direito
como uma seta...
A
cabeça ficou dentro,
O
corpo ficou de fora...
E
os verdes, os lilases, os vermelhos da vidraça
laivaram-se
de sangue que manava,
e
que fazia,
nas
lájeas do corredor,
um
rio que não secava...
Mas,
no instante em que morria,
abrindo
os olhos,
-
olhos de tentação divina e demoníaca –
O
Poeta pôde ver.
...E
viu:
Viu
que, por trás do vitral baço, havia
um
nicho feito no muro.
Dentro,
iluminando o escuro,
de pé sobre tesoiros e tesoiros,estava
certo cadáver duma Santa
que fora embalsamada há muitos séculos...
E a Santa que o esperava,
despertou,
e, sorrindo-se e curvando-se, beijou
a cabeça degolada.
POETA DO MÊS DE JULHO
MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA
"Embora tenha começado a escrever poesia muito cedo ( ou, pelo menos, qualquer coisa que a prenunciava ), a verdade é que só publiquei o meu primeiro livro de poemas aos 36 anos."
- PALAVRAS DE MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA NA ABERTURA DE " POESIA REUNIDA", PUBLICADA PELA QUETZAL, EM 2012
- Nasceu em Lisboa em 1959;
-
Licenciou-se em Línguas e Literaturas Modernas e foi professora;
- Em 1996,
estreia-se na Literatura como poeta, com “ A Casa e o Cheiro dos Livros “ ( traduzido em italiano e catalão ), a que se seguiram " O Canto do Vento nos Ciprestes" ( também editado no Brasil ) e " Nenhum Nome Depois";
" Um pouco a contracorrente da poesia portuguesa, aparece em 1966 um livro chamado " A Casa e o Cheiro dos Livros ", de Maria do Rosário Pedreira, nascida em 1959, é uma colecção de cenas interiores: a penumbra das casas e a interioridade de um casal." - PEDRO MEXIA, NO PREFÁCIO A ESTE LIVRO; e mais adiante Pedro Mexia continua: " O que se estuda então é a transitoriedade da relação amorosa, apresentada numa perspectiva antiquada e antiquadamente feminina. Para quem ama, o carácter nómada do amor não é um avanço civilizacional mas uma tragédia pessoal."
e mais adiante, ainda Pedro Mexia: " Neste livro o sofrimento não nasce de um distanciamento provisório e mutuamente doloroso, mas da ruptura sentida como trágica apenas por uma das pessoas. Daí que estes poemas coleccionem sinais do fim e marcas da lembrança."
e mais adiante, ainda Pedro Mexia: " Neste livro o sofrimento não nasce de um distanciamento provisório e mutuamente doloroso, mas da ruptura sentida como trágica apenas por uma das pessoas. Daí que estes poemas coleccionem sinais do fim e marcas da lembrança."
- Foi
editora dos catálogos oficiais temáticos da Expo-98;
-
Actualmente é editora e escritora. Como editora dedica-se hoje à descoberta de novos autores portugueses;
" Trabalhando no meio editorial, sentia-me inibida de aborrecer os colegas com um livro que certamente se venderia pouco e cuja publicação poderia ser decidida com base em critérios de simpatia, e não de qualidade."
- ABERTURA, IN " POESIA REUNIDA "
- É
seguramente uma das vozes prometedoras da mais recente poesia publicada em
Portugal;
" Escrevendo poesia, como referi, quase desde criança, não tinha o distanciamento necessário para perceber se fazia sentido partilhar com o público os meus poemas " - ABERTURA, IN " POESIA REUNIDA ".
- A sua
poesia interroga obsessivamente as presenças e ausências do amor, integrando-a
na subterrânea corrente que une vozes como Soror Violante do Céu, Florbela
Espanca ou Natália Correia;
- Para a
autora – já distinguida com vários prémios literários – a casa pode ser
considerada como um mundo onde se encerra tudo aquilo que vai perdurando, mesmo
que sob a forma da memória, nostalgicamente;
- Alguns
livros publicados: em 1996 publicou “ A
Casa e o Cheiro dos Livros “; em 2001, “ O Canto do Vento nos Ciprestes”; em
2004, “ Nenhum Nome Depois”.
SOMOS AS PONTAS DE UMA MESMA
FITA
Maria do Rosário Pedreira
Somos as
pontas de uma mesma fita
e acordamos
atados de manhã num
nó que ainda
demora a desfazer. Ao
levantar-me,
arrasto-te comigo, mas
no resto da
vida é ao contrário – e eu
nem me
importo que me leves atrás
se o laço
for contigo, e apertado. Mas,
quando
calha, é mais comprida a fita; e
eu –
inquieta, sem saber onde estás – fico
a contar os
metros, aflita, e a magicar em
franzidos e
embaraços. Eis senão quando
tu apareces
amarrotado de cansaço e nos
meus braços
logo te desfias. Vencido
o susto,
passa-se a fita a ferro – para
se enredar
de novo num nó cego que
de manhã vai
ser um custo desatar.
SE TE PERGUNTO O CAMINHO
Maria do Rosário Pedreira
Se te
pergunto o caminho, falas-me das rochas
que
mortificam o dorso das montanhas; e do ranger
da água no
galope dos rios; e das nuvens que coroam
as
paisagens. Contas que a noite geme nas fendas
dos
penhascos porque as cidades apodreceram junto
às margens;
que o vento é um chicote que desaba
os chapéus;
que a terra treme; que o nevoeiro cega; e
que as casas
onde o medo se extinguia na longa bainha
do
vestido da
mãe cederam ao peso das mágoas dentre delas.
E, se assim
mesmo quero ir, dizes que os meus passos
se perderiam
no comprimento das sombras – que não há
mapas para
os sonhos de quem morre de amor; e que
os ramos
debruçados dos muros em ruínas rasgariam
a carne –
como um sorriso rasga o tecido de um rosto.
Se não me
amas, porque me avisas assim da dor?
SE PARTIRES NÃO ME
ABRACES
Maria do Rosário Pedreira
Se partires,
não me abraces – a falésia que se encosta
uma vez ao
ombro do mar quer ser barco para sempre
e sonha com viagens na pele salgada das ondas.
Quando me
abraças, pulsa nas minhas veias a convulsão
das marés e
uma canção desprende-se da espiral dos búzios;
mas o meu
sorriso tem o tamanho do medo de te perder,
porque o ar
que respiras junto de mim é como um vento
a corrigir a
rota do navio. Se partires, não me abraces –
o teu
perfume preso à minha roupa é um lento veneno
nos dias sem
ninguém – longe de ti, o corpo não faz
senão
enumerar as próprias feridas ( como a falésia conta
as
embarcações perdidas nos gritos do mar ); e o rosto
espia os
espelhos à espera de que a dor desapareça.
Se me
abraçares, não partas.
SAIO DA CAMA PELA FENDA DO LENÇOL
Maria do Rosário Pedreira
Saio da cama
pela fenda do lençol e
fecho-a
sobre ti. Toco o chão ao de
leve, como
uma ave pousa na pele
das ondas.
Visto-me às escuras – tão
mais
discreta a blusa do avesso, a saia
tão
distraída nas costuras. Vou
para a
cozinha de sapatos na mão e
escrevo-te
um bilhete: deixei-te um
beijo sobre
a tua almofada antes
de sair. Não
preciso assinar.
O SONO RETIROU-SE DO MEU CORPO
Maria do Rosário Pedreira
O sono
retirou-se do meu corpo e as cigarras
atormentam
as minhas noites. Depois de teres
partido, os
lençóis da cama são como limos frios
que se
agarram à pele. Porém, se me levanto,
não faço
mais do que arrastar a solidão pela casa;
talvez
procure ainda um gesto teu nos braços
do silêncio,
como um pombo cego a debicar
as sombras
na única praça deserta da cidade –
o amor nunca
aprendeu a ler nas linhas da mão.
ESTA MANHÃ ENCONTREI O TEU NOME
NOS MEUS SONHOS
Maria do Rosário Pedreira
Esta manhã encontrei o teu nome nos meus sonhos
e o teu perfume a transpirar na minha pele. E o corpo
doeu-me onde antes os teus dedos foram aves
de verão e a tua boca deixou um rasto de canções.
No abrigo da noite, soubeste ser o vento na minha
camisola; e eu despi-a para ti, a dar-te um coração
que era o resto da vida – como um peixe respira
na rede mais exausta. Nem mesmo à despedida
foram os gestos contundentes: tudo o que vem de ti
é um poema. Contudo, ao acordar, a solidão sulcara
um vale nos cobertores e o meu corpo era de novo
um trilho abandonado na paisagem. Sentei-me na cama
e repeti devagar o teu nome, o nome dos meus sonhos;
mas as sílabas caíam no fim das palavras, a dor esgota
as forças, são frios os batentes nas portas da manhã-
Maria do Rosário Pedreira
Caminho pelo lado da
rebentação das ondas –
o litoral guarda segredo dos
meus passos entre
as redes de sal trazidas
pelos barcos
e o labirinto das algas ainda
agora oferecidas
à praia. Sento-me à mercê das
falésias a riscar
o teu nome na areia;e é como
se lentamente
pronunciasse um chamamento
triste a que ninguém
acode. Fez-se tarde para os
lamentos das sereias:
agora as marés dobam novelos
de espuma à roda
dos meus pés, as águas já não
transportam
a minha voz, a perder-se
sobre as dunas
que os ventos vão desbastando
devagar
ao cair da noite. Tenho
sempre medo que
não voltes.
ARTE POÉTICA Maria do Rosário Pedreira
Num romance, uma chávena é apenas
uma chávena – que pode derramar
café sobre um poema, se o poeta,
bem entendido, for a personagem.
Num poema, mesmo manchado
de café, a chávena é certamente a
concha de uma mão – por onde eu
bebo o mundo em maravilha, se tu,
bem entendido, fores o poeta.
No nosso romance, não sou sempre
eu quem leva as chávenas para a mesa
a que nos sentamos à noite, de mãos
dadas, a dizer que a lata do café chegou
ao fim, mas a pensar que a vida é
que já vai bastante adiantada para os
livros todos que ainda pensamos ler.
No meu poema, não precisamos de café
para nos mantermos acordados: a minha
boca está sempre na concha da tua mão,
todos os dias há páginas nos teus olhos,
escreve-se a vida sem nunca envelhecermos.
MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA
RECONHECEU DEVIDAMENTE,
JORGE DE SENA MORREU NOS ESTADOS UNIDOS, ONDE DAVA AULAS NUMA UNIVERSIDADE
CALIFORNIANA.
Roubam-me Deus,
outros o Diabo
- quem cantarei?
Roubam-me a Pátria
e a Humanidade
outros me roubam
- Quem cantarei?
Roubam-me a voz
quando me calo,
ou o silêncio
mesmo se falo
- Quem cantarei?
ROUBAM-ME A PÁTRIA
-
1919/1978 -
Jorge
de Sena nasceu em Lisboa, em 1919. Morreu em 1978 nos Estados Unidos.
Foi
aluno, no Liceu Camões, de Rómulo de Carvalho/ o poeta António Gedeão.
Terá
sido o eclodir da guerra civil espanhola, que despertou a sua consciência
social e a sua vocação poética.
Senhor
de vasta cultura e com grande vocação literária, ele, que de formação era
Engenheiro Hidraulico, depois do seu envolvimento no que ficou conhecido como
golpe da Sé contra o regime de Salazar,
e achando não ter condições para
continuar em Portugal, onde a vida lhe era dificultada – o que o levou a ter
dificuldades a nível de sustento familiar – exilou-se voluntáriamente no
Brasil, onde chegou a 7 de Agosto de 1959, tornando-se aí Professor Catedrático
de Literatura Portuguesa.
Em
1965 muda-se para os Estados Unidos, a convite de uma Universidade, onde se põe
ao lado dos alunos nas tomadas de posição contra a guerra do Vietname.
E é como
professor catedrático da Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara, que veio
a falecer.
O
seu afastamento de Portugal vai marcá-lo profundamente tanto a nível pessoal
como literário, e talvez por isso sente-se cidadão do mundo: “ A minha poesia
nada tem de patriótica ou de nacionalista e eu sempre me quis e me fiz um
cidadão do mundo, no tempo e no espaço “.
PORTUGAL
É FEITO DOS QUE PARTEM
Portugal
é feito dos que partem
e
dos que ficam. Mas estes
numa
inveja danada por aqueles terem
sido
capazes de partir, imaginam-lhes a vida
a
série de triunfos sonhados por eles mesmos
nas
horas de descrerem da mesquinhez em que triunfam
todos
os dias. E raivosamente
escondem
a frustração nos clamores
da
injustiça por os outros lá não estarem
(
como eles estão), do mesmo passo
que
se ocupam afanosamente em suprimi-los
(
não vão eles ser tão tolos –
- a
ponto de voltarem ).
( Jorge de Sena )
Por
isso a sua poesia é também “ a poesia de um homem que viveu muito, partilhou a
vida pelo mundo adiante, sempre exilado”.
Sena
pertence a uma geração marcada pelo Surrealismo
e que tenta superar o conflito
entre o esteticismo da revista “Presença” e os neo-realistas, sendo dada grande
importância à linguagem poética ( com a utilização de imagens poéticas fortes,
insólitas ).
O
poeta recusa os pressupostos neo-realistas de comprometimento social, mas, na
sua poesia, a humanidade e o seu destino são temas fulcrais e altamente
valorizados, encontrando expressão num lirismo depurado e numa contenção que se
diriam clássicos:
...”
De amor e de poesia e de ter pátria
aqui
se trata que a ralé não passe
este
limiar sagrado e não se atreva
a
encher de ratos este espaço livre
onde
se morre em dignidade humana
a
dor de haver nascido em Portugal
sem
mais remédio que trazê-lo n’alma” ( Excerto do poema “ Aviso de Porta de
Livraria” – 1972 ).
De salientar a ligação literária que manteve através de toda a sua vida com Sophia de Mello Breyner, de onde resulta um abundante acervo de cartas, tomando proporções estrondosas durante o exílio do poeta, pela quantidade e possibilidade de termos documentos repletos do pensamento de Jorge de Sena, o que de outra forma seria impensável.
QUEM A TEM…
Não hei-de morrer sem saber
qual a cor da liberdade.
Eu não posso senão ser
desta terra em que nasci.
Embora ao mundo pertença
e sempre a verdade vença,
qual será ser livre aqui,
não hei-de morrer sem saber.
Trocaram tudo em maldade,
é quase um crime viver.
Mas embora escondam tudo
e me queiram cego e mudo
não hei-de morrer sem saber
qual a cor da liberdade.
ERA ASSIM JORGE DE SENA, O HOMEM/O POETA QUE O
PAÍS MANDOU EMBORA !
CARTA A MEUS FILHOS SOBRE OS
FUZILAMENTOS DE GOYA
( EXCERTO )
Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, porque tudo é possível,
que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade
que advém
de nada haver que não seja simples e
natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso
anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o
respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem
seja sequer isto
o que vos interesse para viver. Tudo
é possível,
ainda quando lutemos, como devemos
lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a
justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel
dedicação à honra de estar vivo.
Um dia sabereis que mais que a
humanidade
não tem conta o número dos que pensaram assim,
amaram o seu semelhante no que ele
tinha de único,
de insólito, de livre, de diferente,
e foram sacrificados, torturados,
espancados,
e entregues hipocritamente à secular
justiça,
para que os liquidasse “com suma
piedade e sem efusão de sangue”.
( Lisboa, 25 de Junho de 1959 )
CAMÕES DIRIGE-SE AOS SEUS CONTEMPORÂNEOS
Podereis roubar-me tudo:
as ideias, as palavras, as imagens,
e também as metáforas,
os temas, os motivos,
os símbolos, e a primazia
nas dores sofridas de uma língua nova,
no entendimento de outros, na coragem
de combater, julgar, de penetrar
em recessos de amor para que sois castrados.
E podereis depois não me citar,
Suprimir-me, ignorar-me, aclamar até
outros ladrões mais felizes.
Não importa nada: que o castigo
será terrível. Não só quando
vossos netos não souberem já quem sois
terão de me saber melhor ainda
do que fingis que não sabeis,
como tudo, tudo o que laboriosamente pilhais,
reverterá para o meu
nome. E mesmo será meu,
tido por meu, contado como meu,
até mesmo aquele pouco e miserável
que, só por vós, sem roubo, haveríeis feito.
Nada tereis, mas nada: nem os ossos,
Que um vosso esqueleto há-de ser buscado,
para passar por meu. E para outros ladrões,
iguais a vós, de joelhos, porem flores no túmulo.
OS PARAÍSOS
ARTIFICIAIS
Na minha terra, não há terra, há
ruas;
mesmo as colinas são de prédios altos
com renda muito mais alta.
Na minha terra, não há árvores nem
flores.
As flores, tão escassas, dos jardins
mudam ao mês.
E a Câmara tem máquinas especialmente
para desenraizar as árvores
O cântico das aves – não há cânticos,
mas só canários de 3º andar e papagaios
de 5º.
E a música do vento é frio nos
pardieiros.
Na minha terra, porém, não há
pardieiros,
que são todos na Pérsia ou na China,
ou em países inefáveis.
A minha terra não é inefável.
A vida na minha terra é que é
inefável.
Inefável é o que não pode ser dito.
AMO-TE
MUITO, MEU AMOR
Amo-te muito, meu amor, e
tanto
que, ao ter-te, amo-te mais,
e mais ainda
depois de ter-te, meu amor.
Não finda
com o próprio amor o amor do
teu encanto.
Que encanto é o teu? Se
continua enquanto
sofro a traição dos que,
viscosos, prendem,
por uma paz da guerra a que
se vendem,
a pura liberdade do meu
canto,
um cântico da terra e do seu
povo,
nesta invenção da humanidade
inteira
que a cada instante há que
inventar de novo,
tão quase é coisa ou sucessão
que passa...
Que encanto é o teu? Deitado
à tua beira,
Sei que se rasga, eterno, o
véu da Graça.
GÉNESIS ( VI )
De mim não falo mais: não
quero nada.
De Deus não falo: não tem
outro abrigo.
Não falarei também do mundo
antigo,
pois nasce e morre em cada
madrugada.
Nem de existir, que é vida
atraiçoada,
para sentir o tempo andar
comigo;
nem de viver, que é
liberdade errada,
e foge todo o Amor quando o
persigo.
Por mais justiça...-Ai
quantos que eram novos
em vão a esperaram, porque
nunca a viram!
E a eternidade...Ó
transfusão dos povos!
Não há verdade: o mundo não
a esconde.
Tudo se vê: só se não sabe
aonde.
Mortais ou imortais, todos
mentiram.
GLOSA
DE GUIDO CAVALCANTI
GLOSA
DE GUIDO CAVALCANTI
Porque não espero de jamais
voltar
à terra em que nasci; porque
não espero,
ainda que volte, de
encontrá-la pronta
a conhecer-me como agora sei
que eu a conheço; porque não
espero
sofrer saudades, ou perder a
conta
dos dias que vivi sem a
lembrar;
porque não espero nada, e
morrerei
no exílio sempre, mas fiel ao
mundo,
já que de outro nenhum morro
exilado;
porque não espero, do meu
poço fundo,
olhar o céu e ver mais que
azulado
esse ar que ainda respiro,
esse ar imundo
por quantos que me ignoram
respirado;
porque não espero, espero
contentado.
( Jorge de Sena )
José Carlos Ary dos Santos
“ A poesia é, em primeiro lugar, a maneira
que eu tenho
de falar com o meu povo..."
José Carlos Ary dos Santos,
nasceu no seio de uma família que habitava uma moradia na Estrada da Luz –
moradia de família onde viveu grande parte da sua infância -, filho de pai
médico descendente de uma família aristocrática.
Frequentou o ensino
particular, sempre em Colégios de renome, onde era bom aluno, com notas acima
da média, mas anormalmente indisciplinado.
Como consequência foi enviado
para um colégio interno em Santo Tirso.
Desde muito cedo com grande
talento para escrever, o seu carácter indisciplinado e irreverente, a sua
inquietude, leva-o a frequentar Direito e Letras, sem no entanto ter concluído
qualquer dos cursos.
No entanto, é a morte precoce
da mãe que lhe irá moldar a sua personalidade tornando-o “um homem –menino
grande”, carente de ternura e ansioso de ser amado e o vai levar aos 16 anos a
sair de casa e a viver em quartos alugados, fazendo trabalhos vários que lhe
vão aparecendo e até chegando a passar fome, nunca deixando que a família lhe
desse qualquer tipo de ajuda. É também nessa altura que os seus poemas são seleccionados
para a Antologia do Prémio Almeida Garrett, concorrendo com nomes já firmados
na poesia portuguesa.
No ano de 1958 inicia funções
numa agência de publicidade. Em 1963 publica o seu primeiro livro de poemas: A
Liturgia do Sangue.
Numa entrevista, Ary
confessará: “Fazer versos é, para mim,
uma função tão natural ou necessária como dormir, comer ou fazer amor”.
Ele
era sempre “o provocador”, muitas vezes
“o exaltado”, aquele que não sabia abordar as coisas senão chamando-as
pelos nomes próprios, enfrentando-as, nunca escamoteando a verdade fosse ela
qual fosse, até mesmo quando se tratava da sua própria natureza: a sua
homossexualidade, por ele assumida sempre com frontalidade.
Autor de mais de seiscentos
poemas para canções,
com inúmeras presenças em Festivais da Canção da RTP,
algumas delas com presenças no Festival Internacional – caso por exemplo, do
espantoso êxito de Simone de Oliveira com “Desfolhada” em Madrid – publica por
volta de 1975 o famoso poema “ As Portas Que Abril Abriu”,
tendo
gravado um disco com o mesmo título: “ Agora
que já floriu/ a esperança na nossa terra/ as portas que Abril abriu/ nunca
mais ninguém as cerra”.
Um dia referiu: “ Quando eu
morrer, vai ser em glória.
Vai a classe operária toda ao meu funeral e eu, sentado no muro do cemitério, a vê-los passar !".
E assim foi.
Segundo os jornais de 21 de Janeiro de 1984, “Nunca um Poeta teve um funeral
assim”. Tinha apenas 48 anos de idade.
Embora para ele “ a poesia fosse em primeiro lugar a maneira
que tinha de falar com o povo “
também igualmente afirmava: “ o que é
certo é que nunca abandonei nenhuma
das três linhas que fazem parte do todo da minha poesia: a lírica, a satírica e
a de intervenção”.
Como ele próprio referiu: “ Serei tudo o que disserem/ por temor ou
negação: / Demagogo mau profeta/ Falso médico ladrão/ Prostituta proxeneta/
Espoleta televisão./ Serei tudo o que disserem:/ Poeta castrado Não!”
- AUTO-RETRATOPoeta é certo mas de cetinetafulgurante de mais para alguns olhosbom artesão na arte da provetanarciso de lombardas e repolhos.Cozido à portuguesa mais as carnessuculentas da auto-importânciacom toicinho e talento ambas as partesdo meu caldo entornado na infância.Nos olhos uma folha de hortelãque é verde como a esperança que amanhãamanheça de vez a desventura.Poeta de combate disparatepalavrão de machão no escaparateporém morrendo aos poucos de ternura.( Ary dos Santos )
-
- ESTRELA DA TARDE
- Era a tarde mais longade todas as tardesque me aconteciaeu esperava por titu não vinhas tardavase eu entardeciaera tarde tão tardeque a boca tardando-lheo beijo morriaquando à boca da noitesurgiste na tardetal rosa tardia;quando nós nos olhámostardámos no beijoque a boca pediae na tarde ficámosunidos ardendona luz que morriae nós dois nessa tardeem que tanto tardasteo sol amanheciaera tarde de maispara haver outra noitepara haver outro dia.Meu amor meu amorminha estrela da tardeque o luar te amanheçae o meu corpo te guardemeu amor meu amoreu não tenho a certezase tu és a alegriaou se és a tristezameu amor meu amoreu não tenho a certeza.Foi a noite mais belade todas as noitesque me adormeceramdos nocturnos silênciosque à noite de aromase beijos se encheramfoi a noite em que os nossos dois corpos cansadosnão adormecerame da estrada mais linda da noiteuma festa de jogo fizeramforam noites e noitesque numa só noite nos aconteceramera o dia da noite de todas as noitesque nos precederamera a noite mais clara daquelesque à noite amando se deramentre os braços da noitede tanto se amaremvivendo morreram.Meu amor meu amorminha estrela da tardeque o luar te amanheçae o meu corpo te guardemeu amor meu amoreu não tenho a certezase tu és a alegriaou se és a tristezameu amor meu amoreu não tenho a certeza.Eu não sei meu amorse o que digo é ternurase é riso se é prantoé por ti que adormeçoe acordado recordo no cantoessa tarde em que tardesurgiste dum triste e profundo recantoessa noite em que cedo nascestedespido de mágoa e de espantomeu amor nunca é tarde nem cedopara quem se quer tanto!
- (Ary dos Santos)
-
MEU AMOR MEU AMOR
- Meu amor meu amormeu corpo em movimentominha voz à procurado seu próprio lamento.Meu irmão de amargura meu punhal a crescernós parámos o tempo não sabemos morrere nascemos nascemosdo nosso entristecer.Meu amor meu amormeu pássaro cinzento,a chorar a lonjura,do nosso afastamento.Meu amor meu amor,meu nó de sofrimentominha mó de ternuraminha nau de tormentoeste mar não tem cura este céu não tem arnós parámos o vento não sabemos nadare morremos morremos
devagar devagar - ARTE PERIPOÉTICA
Aristóteles, visita
da casa de minha avó,
não acharia esquisita
esta forma de estar só
esta maneira de ser
contra a maneira do tempo
esta maneira de ver
o que o tempo tem por dentro.
Aristóteles diria
entre dois goles de chá
que o melhor ainda seria
deixar o tempo onde está
pô-lo de perto no tema
e de parte na poesia
para manter o poema
dentro da ordem do dia.
Aristóteles, visita
da casa de minha avó,
não acharia esquisita
esta forma de estar só.
Ele sabia que o poeta
depois de tudo inventado
depois de tudo previsto
de tudo vistoriado
teria de fazer isto
para não continuar
o que já estava acabado
teria de ser presente
não futuro antecipado
não profeta não vidente
mas aço bem temperado
cachorro ferrando o dente
na canela do passado
adaga cravando a ponta
no coração do sentido
palavra osso furando
pele de cão perseguido.
Aristóteles, visita
da casa de minha avó,
não acharia esquisita
esta forma de estar só
esta maneira de riso
que é a mais original
forma de se ter juízo
e ser poeta actual.
Aristóteles, visita
da casa de minha avó.
Também diria antes só
do que mal acompanhado
antes morto emparedado
em muro de pedra e cal
aonde não entre bicho
que não seja essencial
à evasão da palavra
deste silêncio mortal.
O OBJECTO
Há que dizer-se das coisas
o somenos que elas são.
Se for um copo é um copo
se for um cão é um cão.
Mas quando o copo se parte
e quando o cão faz ão ão?
Então o copo é um caco
e um cão não passa dum cão.
Quatro cacos são um copo
quatro latidos um cão.
Mas se forem de vidraça
e logo forem janela?
Mas se forem de pirraça
e logo forem cadela?
E se o copo for rachado?
E se o cão não tiver dono?
Não é um copo é um gato
não é um cão é um chato
que nos interrompe o sono.
E se o chato não for chato
e apenas cão sem coleira?
E se o copo for de sopa?
Não é um copo é um prato
não é um cão é literato
que anda sem eira nem beira
e não ganha para a roupa.
E se o prato for de merda
e o literato for da esquerda?
Parte-se o prato que é caco
mata-se o vate que é cão
e escreveremos então
parte prato sape gato
vai-te vate foge cão.
Assim se chamam as coisas
pelos nomes que elas são.
O GUARDA-CHUVA
Chovem protestos palavras
dramaturgos e profetas
a chuva dos manifestos
fecunda a horta das letras.
Chovem bátegas de sílabas
chovem doutrinas e tretas
chovem ismos algarismos
que numeram os poetas.
Chovem ciências ocultas
chovem ciências concretas
e nascem alfaces cultas
para poemas-dietas.
Chovem tiros de espingarda
chovem pragas e lamentos
e cresce a couve lombarda
Nos quintais do sentimento.
Chove granizo política
dum céu carranca cinzento
constipa-se logo a crítica
que se mete para dentro.
Chovem as poetisas símias
da menina flor dos olhos
surgem canteiros de zinias
salpicados de repolhos.
Chovem as mulheres-a-dias
com os sonetos nas curvas
lavadeiras de poesia
em barrela de águas turvas.
Chove uma chuva de pedra
chovem astros em cardume
há uma erva que medra
com este estrume de lume.
Medra a erva do talento
medra a baga do azedume
não há erva que não medre
nas estufas do ciúme.
Chove uma chuva miúda
que é chuva de molha-tolos
sai o poema taluda
e saem rimas nos bolos.
Para o poeta que chova
por dentro, em razão inversa,
forçoso é ter guarda-chuva
contra a palavra perversa
que foi um chão que deu uva
e hoje só dá conversa.
O MEU É TEU
O meu é teu. O teu é meu
e o nosso é nosso quando
posso
dizer que um dente nos cresceu
roendo o mal até ao osso.
O teu é nosso. O nosso é teu.
O nosso é meu. O meu é
nosso,
e tudo o mais que
aconteceu
é uma amêndoa sem caroço.
Dizem que sou. Dizem que
faço,
que tenho braços e
pescoço
- que é da cabeça que
desfaço,
que é dos poemas que eu não
ouço?
O meu é teu. O teu é meu
e o nosso, nosso quando
posso
olhar em frente para o
céu
e sem o ver galgar o fosso.
Mas tu és tu e eu sou eu
não vejo o fundo ao nosso
poço
o meu é meu, dá-me o que é
teu
depois veremos o que é nosso.
- DESFOLHADA
- Corpo de linholábios de mostomeu corpo lindomeu fogo posto.Eira de milholuar de Agostoquem faz um filhofá-lo por gosto.É milho-reimilho vermelhocravo de carnebago de amorfilho de um reique sendo velhovolta a nascerquando há calor.Minha palavra dita à luz do sol nascentemeu madrigal de madrugadaamor amor amor amor amor presenteem cada espiga desfolhada.Minha raiz de pinho verdemeu céu azul tocando a serraoh minha água e minha sedeoh mar ao sul da minha terra.É trigo loiroé além Tejoo meu paísneste momentoo sol o queimao vento o beijaseara louca em movimento.Minha palavra dita à luz do sol nascentemeu madrigal de madrugadaamor amor amor amor amor presenteem cada espiga desfolhada.Olhos de amêndoacisterna escuraonde se alpendraa desventura.Moira escondidamoira encantadalenda perdidalenda encontrada.Oh minha terraminha aventuracasca de nozdesamparada.Oh minha terraminha lonjurapor mim perdidapor mim achada.Amor amor amor amor amorpresenteem cada espiga desfolhada.
FOI COM
O MÊS DE MARÇO/MÊS DA MULHER
QUE INICIÁMOS O POETA DO MÊS.
E INICIÁMOS COM MARIA TERESA HORTA, POIS ACHÁMOS QUE SIMBOLIZAVA, NA POESIA, A LUTA PELA TOTAL EMANCIPAÇÃO FEMININA NOS ANOS DO ESTADO NOVO ONDE ERA MUITO DURO E SOFRIDO NA PELE QUEM QUISESSE E OUSASSE FAZER FRENTE A UMA POLÍTICA ENVOLVENDO FORTE CARGA REPRESSIVA, ALTAMENTE CONSERVADORA E MACHISTA, QUE SE ABAFAVA QUALQUER CIDADÃO QUE LHE FIZESSE FRENTE, QUANTO ÀS MULHERES AINDA CONSEGUIA SER MAIS AUTORITÁRIA E REPRESSIVA!
Nasce em Lisboa em 1938, no
seio de uma família ligada à aristocracia pelo lado materno – a mãe é descendente da notável
poetisa do século XVIII, Marquesa de Alorna -.e filha do Catedrático de Medicina,
ex-Bastonário da Ordem dos Médicos na década de 50, e cientista de renome,
Profº Jorge Horta.
Frequenta a Faculdade de
Letras de Lisboa e abandona-a para se tornar jornalista, sua grande paixão. Ao
mesmo tempo cultiva o cineclubismo, tendo sido directora do ABC Cine-Clube de
Lisboa.
Colaboradora em inúmeras
publicações, em todos os escritos traz à
luz a bandeira das suas convicções sobre a emancipação feminina.
Esta luta foi também, desde
sempre, o seu combate na ficção e na poesia, onde apela a uma nova maneira de
ser mulher e faz vibrar uma fortíssima e invulgar pulsão erótica.
Autora de poemas de intensa
sugestão amorosa e erótica, “de expressão inflamada do desejo físico, do prazer
sexual, de presença táctil, gustativa e sensual dos corpos antes, durante e
depois do amor”.
“Na formulação metafórica, na
franqueza sem eufemismos, na simplicidade imediata do léxico, no ritmo, na
sonoridade musical de rimas”, Maria Teresa Horta abriu, desde a década de 60,
novos caminhos à poesia de amor em Portugal.
Estreou-se em 1960 com um
livro de poesia intitulado “ Espelho Inicial”. Entre outros, publica em 1984 “
Minha Mãe, Meu Amor”.
Ajudou a lançar e dirigiu até
ao fim, a Revista “Mulheres”, que já pós-25 de Abril é uma voz forte,
impulsionadora, abordando os temas da mulher, para que possa haver um caminhar
mais justo e equitativo da sociedade.
Com este livro recebe o Prémio D.Diniz desse ano, prémio esse que aceita receber, recusando no entanto fazê-lo das mãos de Passos Coelho.
que luta pelos direitos das outras Mulheres,
uma voz que se faz ouvir goste-se ou não dela,
uma autora que não se importa de estar dez anos
a "fazer" um livro, com a documentação, com a
recriação de uma época fascinante, o "século XVIII",
Século das Luzes, com o substrato genético de
memórias afetivas que a entranha dessa outra
figura fascinante de mulher, ímpar no seu
tempo em Portugal que foi,
Leonor de Almeida Portugal, neta dos marqueses de Távora, e que viria a ser
a 4ª marquesa de Alorna, enclausurada com apenas 8 anos de idade a mando
do marquês de Pombal no convento de S. Francisco em Chelas, donde só saiu aos
27 anos.
A UMA DESPEDIDA
Marquesa
de Alorna
As horas voadoras vão trazendo
O instante fatal de uma partida,
Que dos gostos ligeiros desta vida
Um retrato funesto está fazendo.
A sociedade amável entretendo
Esteve a paz ( por pouco possuída );
Que em mágoa pela dura despedida
No aflito peito sinto ir convertendo.
Com que horrores a pálida tristeza
Cobre o círculo breve dos meus anos,
Martiriza a sensível natureza !
Como havendo pesares tão tiranos,
E almas nobres, que adorna a
singeleza,
São tão poucos os santos desenganos
?!
ESCUTAM-ME ESTAS PENHAS
que as
expressões do brando sentimento,
como em
sonhos de enferma reputadas,
insultam,
por dobrar o meu tormento.
serve as
leis execrandas do meu fado;
aqui geme o
legítimo heroísmo,
de uma falsa
razão atormentado.
AMANTES MALDITOS
Maria Teresa Horta
Partilhamos o desassossego
Do silêncio acrisolado
A eternidade é nossa
Mas sem jamais sabermos
Quanto sempre nos amámos
Tão longe embora da espada fusional
Que nos trespassasse e unisse
Os corpos e as almas
Ao longo dos tempos infinitos
Ah, os amantes malditos!
MORGAN LE FAY
Maria Teresa Horta
Grande Mãe, sacerdotisa
No se disfarce de maga
Pelos caminhos
Alquímicos
E os espelhos atravessados
Onde está o ser alado?
O cálice da redenção?
Graal – ela negava
A caminho de Avalon
Perdimentos e negrumes
De coração trespassado.
( inédito )
MARIA DO ANJO
Maria Teresa Horta
Serás
Como o tempo
À minha cabeceira
Exíguo e desmedido
O gume
O cume
O gemido.
O
CORPO
o corpo:
e do meu corpo,
digo no corpo
os sítios e os lugares
de feltro os seios
de lâminas os dentes
de seda as coxas
o dorso, em seus vagares.
Lazeres do corpo:
os ombros,
as lisuras – o colo alto
a boca retomada
no fim das pernas
a porta da ternura,
dentro dos lábios
o fim da madrugada.
Digo do corpo,
o corpo:
e do teu corpo,
as ancas breves
ao gosto dos abraços
os olhos fundos
e as mãos ardentes
com que me prendes
em súbitos cansaços.
Vício de um corpo:
o teu
com o seu veneno
que bebo e sugo
até ao mais amargo,
ao mais cruel grau
do esgotamento
e onde em segredo
nado
em cada espasmo.
Digo do corpo,
o corpo:
o nosso corpo.
Digo do corpo
o gozo do que faço.
Digo do corpo
o uso
dos meus dias
e a alegria
do corpo sem disfarce.
MORRER DE AMOR
Maria Teresa Horta
ao pé da tua boca
Desfalecer
à pele
do sorriso
Sufocar
de prazer
com o teu corpo
Trocar tudo por ti
se for preciso
MINHA SENHORA
DE MIM
Maria
Teresa Horta
Comigo me
desavim
minha
senhora
de mim
nem o corpo
que disfarço
Comigo me
desavim
minha
senhora
de mim
nunca
dizendo comigo
o amigo nos
meus braços
Comigo me
desavim
minha
senhora
de mim
recusando o
que é desfeito
no interior
do meu peito.
( Minha Senhora de Mim, 1971
Colaboradora em inúmeras
publicações, em todos os escritos traz à
luz a bandeira das suas convicções sobre a emancipação feminina.
Esta luta foi também, desde sempre,
o seu combate na ficção e na poesia, onde apela a uma nova maneira de ser
mulher e faz vibrar uma fortíssima e invulgar pulsão erótica.
Autora de poemas de intensa
sugestão amorosa e erótica, “de expressão inflamada do desejo físico, do prazer
sexual, de presença táctil, gustativa e sensual dos corpos antes, durante e
depois do amor”.
“Na formulação metafórica, na
franqueza sem eufemismos, na simplicidade imediata do léxico, no ritmo, na
sonoridade musical de rimas”, Maria Teresa Horta abriu, desde a década de 60,
novos caminhos à poesia de amor em Portugal.
Estreou-se em 1960 com um
livro de poesia intitulado “ Espelho Inicial”. Entre outros, publica em 1984 “
Minha Mãe, Meu Amor”.
Ajudou a lançar e dirigiu até
ao fim, a Revista “Mulheres”, que já pós-25 de Abril é uma voz forte,
impulsionadora, abordando os temas da mulher, para que possa haver um caminhar
mais justo e equitativo da sociedade.
Em 2011 lança “ As Luzes de
Leonor”, estudo envolvente da poetisa/trisavó Marquesa de Alorna inserindo no
século das Luzes o Portugal do século XVIII.
Com este livro recebe o
Prémio D.Diniz desse ano, prémio esse que aceita receber, recusando no entanto
fazê-lo das mãos de Passos Coelho.
POETA DO MÊS DE FEVEREIRO
1924-1986
De origens irlandesas, mas com raízes em Lisboa a partir do século XVIII, Alexandre O'Neill nasceu em 1924 em Lisboa e vem a morrer em 1986, antes de perfazer 62 anos.
Da infância, conservou a memória de um menino triste e fechado, a espreitar a Rua da Alegria dum quarto andar e as visitas breves e marcantes da avó Maria O'Neill, escritora, sufragista, vegetariana e dedicada à causa espirita.
Na adolescência começou a ler - além da avó escritora, a família era tradicionalmente bibliófila - o que não impediu porém, o jovem Alexandre de não ter querido, sequer, terminar o Curso Geral dos Liceus , embora ainda estudante, já tivesse publicado os primeiros versos num jornal de Amarante, onde passava as férias e conheceu Teixeira de Pascoais.
Na verdade, apesar de nunca ter sido um escritor profissional, viveu sempre da escrita ou de trabalhos relacionados com livros: foi cronista no Diário de Lisboa, na Capital e no JL, e principalmente trabalhou em publicidade onde pode dizer-se que foi um dos seus renovadores, impondo e difundindo novos critérios, novas formas, nova dinâmica.
O "slogan" publicitário " Há mar e mar...há ir e voltar...", ainda hoje empregue nas campanhas de segurança das praias, nunca terá saído da memória dos portugueses desde que surgiu, ao ponto de se ter convertido em provérbio.
Foi também coordenador de uma Biblioteca Itinerante da Gulbenkian, tradutor e assessor literário. Mas foi só em 1958 que O'Neill se viu reconhecido como poeta, com a edição de " No Reino da Dinamarca".
primeiramente ligado ao surrealismo pela mão de Mário Cesarinny, onde as posições anti-neo-realistas eram radicais e desafiantes, tanto como as atitudes contra o regime, dele se demarca em 1951 em " Tempo de Fantasmas", onde se insere um poema que o torna célebre, " Um Adeus Português ".
De
Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a
luz de ombros puros e a sombra
de
uma angústia já purificada.
Não
tu não podias ficar presa comigo
à
roda em que apodreço
apodrecemos
a
esta pata ensanguentada que vacila
quase
medita
e
avança mugindo pelo túnel
de
uma velha dor.
Não
podias ficar nesta cadeira
onde
passo o dia burocrático
o
dia-a-dia da miséria
que
sobe aos olhos vem às mãos
aos
sorrisos
ao
amor mal soletrado
à
estupidez ao desespero sem boca
ao
medo perfilado
à
alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do
modo funcionário de viver.
em
trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até
ao dia que não vem da promessa
puríssima
da madrugada
mas
da miséria de uma noite gerada
por
um dia igual.
Ñão
podias ficar presa comigo
à
pequena dor que cada um de nós
traz
docemente pela mão
a
esta pequena dor à portuguesa
tão
mansa quase vegetal
Não
tu não mereces esta cidade não mereces
esta
roda de náusea em que giramos
até
à idiotia
esta
pequena morte
e o
seu minucioso e porco ritual
esta
nossa razão absurda de ser.
Não
tu és da cidade aventureira
da
cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o
cemitério ardente
da
sua morte
tu
és da cidade onde vives por um fio
de
puro acaso
onde
morres ou vives não de asfixia
mas
às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem
a moeda falsa do bem e do mal.
***
que
vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te
adeus
e
como um adolescente
tropeço
de ternura
por
ti.
No entanto, sendo um oposicionista feroz, vigiado pele Pide e tendo inclusivamente sido preso - em 1953, em Caxias, por ter ido esperar Maria Lamas no seu regresso do exílio em Paris – nunca militou em nenhum partido político, nem antes nem depois do 25 de Abril – pois era demasiado individualista para se envolver em qualquer militância partidária.
Já nos anos 70, escreveu poemas destinados a serem musicados pelo
extraordinário luso-francês Alain Oulman – como é o caso de “Gaivota” ou “ Há Palavras Que Nos Beijam” cantados por Amália.
HÁ PALAVRAS QUE NOS BEIJAM
Há
palavras que nos beijam
como
se tivessem boca
palavras
de amor, de esperança,
de
imenso amor, de esperança louca.
Palavras
nuas que beijas
quando
a noite perde o rosto
palavras
que se recusam
aos
muros do teu desgosto.
De
repente coloridos
entre
palavras sem cor
esperadas,
inesperadas,
como
a poesia ou o amor.
( O
nome de quem se ama
letra
a letra revelado
no mármore
distraído,
no
papel abandonado ).
Palavras
que nos transportam
onde
a noite é mais forte
ao
silêncio dos amantes
abraçados
contra a morte.
…abraçados
contra a morte.
( Alexandre O'Neill)
VELHOS
( 4 )
Pouco a pouco arrumaram-no –
é a vida! –
“ num trabalho muito mais
consentâneo
com as suas possibilidades
actuais.”
A sua experência, Azeredo,
é-nos insubstituível.
Mas…que anda o senhor a fazer
com os pardais?
Primeiro, migalhas no
parapeito da janela.
Depois, na sua incrível
secretária!
Acredite que eu nada tenho
contra a pardalada,
Azeredo, mas não despacho,
enfim, a papelada
Que me venha com lembranças
tais!
Aqui para nós, Azeredo, sabe
como lhe chamam?
Pois fique-se com esta :o
velho dos pardais.
Você traz-me a rapaziada
indisciplinada
e é coisa, Azeredo, que eu
não tolero mais!
Por que não vai você, ó
Azeredo amigo,
dar milho àqueles pombos do Rossio?
Cartuchinho no bolso, na
manhã de domingo…
É muito mais próprio e até
muito mais lindo!
De qualquer forma, Azeredo,
tenho dito!
Azeredo agradeceu a
admoestação.
Disse do seu ornitólogo amor,
mas prometeu
emendar-se, cumpridor como
era.
Voltou à secretária, tinha um
pardal à espera.
Azeredo sentou-se e chorou em
silêncio,
enquanto o passarinho com o
bico lhe puxava o lenço.
Colegas perpassavam, risos
maldisfarçando.
A aflição do passarinho
crescia com as lágrimas
que de Azeredo, uma a uma, o
lenço iam molhando.
Foi então que o pardal chamou
a si um coração maior.
Seu bico aduncou-se, seu
corpo (tcht! ) num ápice cresceu,
desdobrou longas asas, as
garras firmou
e o olhar tornou-se-lhe um
fuzil do céu.
Mil espanholas refrescando-se
com os seus abanicos
foi o voo da ave, que em
círculos medonhos deixou tudo em fanicos.
E ainda hoje os funcionários,
que fugiram aos gritos,
se recusam a entrar na sala
onde Azeredo
é um cadáver feliz e
incorrupto,
sob outro, alado, bastante
mais pequeno!
( Alexandre O'Neill)
A sua escrita poética, fundamentada na recusa de qualquer misticismo,
transcendência ou hermetismo tradicional totalmente ocupado no “tricotar” das palavras ou no “fazer bonito” e sob uma enorme ironia e até um desdém
manifestado perante a instituição literária, torna-o um poeta altamente
singular.
CÃO
Cão passageiro, cão estrito,
cão rasteiro cor de luva
amarela,
apara-lápis, fraldiqueiro,
cão liquefeito, cão estafado,
cão de gravata pendente,
cão de orelhas engomadas,
de remexido rabo ausente,
cão ululante, cão coruscante,
cão magro, tétrico, maldito,
a desfazer-se num ganido,
a refazer-se num latido,
cão disparado: cão aqui,
cão além, e sempre cão.
Cão marrado, preso a um fio
de cheiro,
cão a esburgar o osso
essencial do dia-a-dia,
cão estouvado de alegria,
cão formal da poesia,
cão-soneto de ão-ão bem
martelado,
cão moído de pancada
e condoído do dono,
cão: esfera do sono,
cão de pura invenção, cão
pré-fabricado,
cão-espelho, cão-cinzeiro,
cão-botija,
cão de olhos que afligem,
cão-problema...
sai depressa, ó cão, deste poema !
( Alexandre O'Neill)
O SUJA-CHAMINÉS
Da gaiola de vidro, à prova
de bala,
o suja-chaminés observava a
sala.
Reforçara-se muito, nos últimos
meses,
a sua fé em Deus.
Não nesse que desce pela
chaminé
e entretém, candidamente, a
nossa fé.
Mas num Deus mais volátil,
de iconografia mais
industrial,
sempre a subir ao céu por
toda a eternidade.
Na gaiola de vidro, à prova
da bala,
o suja-chaminés era visto da
sala.
Diz-se que, afinal,
matou menos judeus do que se
julgava.
( Alexandre O'Neill )
A M A MEU FAVOR
A meu favor
tenho o verde secreto dos
teus olhos
algumas palavras de ódio
algumas palavras de amor
o tapete que vai partir para
o infinito
esta noite ou uma noite
qualquer
A meu favor
as paredes que insultam
devagar
certo refúgio acima do
murmúrio
que da vida corrente teime
em vir
o barco escondido pela
folhagem
o jardim onde a aventura
recomeça.
CESÁRIO VERDE
" A MIM O QUE ME RODEIA
É O QUE ME PREOCUPA "
Uma das personalidades mais originais, mais renovadoras da poesia portuguesa do séc.XIX, Cesário Verde, nasceu em Lisboa em 1885, oriundo de uma família burguesa abastada, e morreu no Lumiar ( em Lisboa ), tuberculoso, em 1886.
Só em 1986, cem anos após a sua morte, a cidade de Lisboa através dos seus porta-vozes eleitos pelos lisboetas para os orgãos autárquicos, o reconhece públicamente como o grande poeta de Lisboa, inaugurando uma lápide na casa onde morreu, no Lumiar.
O pai era lavrador e comerciante ( possuía uma quinta em Linda-a-Pastora e uma loja de ferragens na capital ) e por estas duas formas de actividade prática se repartiu Cesário Verde tendo sempre muita importância o binómio campo-cidade, que enformou toda a sua obra.
Casa da família Verde em Linda-a-Pastora
Cesário nunca teve nenhum livro publicado em vida.
Os seus versos saíam esparsos em páginas de jornais ou revistas ( mais ou menos locais ) da época.
Em 1873, pela primeira vez publicam-se composições suas no " Diário de Notícias ".
Artista muito lúcido, com invulgar consciência crítica - e nisto reside, em parte, a modernidade que o torna um admirável precursor-, poeta de Lisboa, Cesário, pela originalidade do seu olhar e pela sua capacidade crítica é, sem dúvida, um dos mais importantes precursores do modernismo e dos poetas que mais influência viriam a exercer na poesia portuguesa do século XX.
Nele, a objectividade plástica alterna, em vários passos, com a fuga imaginativa.
Depois de 1875, a poesia de Cesário começa a revelar notável maturidade.
" O Sentimento de Um Ocidental" veio a lume em 1880. A crítica, porém, não o estimula. Desiludido afasta-se quatro anos, desistindo de uma vida literária. Porém, com a morte quase sucessiva de dois irmãos, que morrem tuberculosos, volta a sentir a necessidade imperiosa de escrever poesia, publicando em 1884 o poema " Nós ", que já escrevera em 1881.
NÓS
Tínhamos nós voltado à capital maldita,
Eu vinha de polir isto tranquilamente,
Quando nos sucedeu uma cruel desdita,
Pois
um de nós caíu, de súbito, doente.
Uma tuberculose abria-lhe cavernas!
Dá-me rebate ainda o seu tossir profundo!
E eu sempre lembrarei, triste, as palavras
ternas,
Com que se despediu de todos e do mundo!
Pobre rapaz robusto e cheio de futuro!
Não sei de um infortúnio imenso como o seu!
Viu o seu fim chegar como um medonho muro,
E, sem querer, aflito e atónito,
morreu!...
De tal maneira que hoje, eu desgostoso e
azedo
Com tanta crueldade e tantas injustiças,
Se inda trabalho é como os presos no
degredo,
Com planos de vingança e ideias
insubmissas.
E agora, de tal modo a minha vida é dura,
Tenho momentos maus, tão tristes, tão
perversos,
Que sinto só desdém pela literatura,
E até desprezo e esqueço os meus amados versos!
( Cesaário verde )
Na sua obra podemos considerar uma primeira fase formada na escola do epigrama cínico, do humorismo, da precisão parnasiana, escola poética que vigorava então *.
RESPONSO ( Um Excerto )
I
Num castelo deserto e solitário,
toda de preto, às horas silenciosas,
envolve-se nas pregas dum sudário
e chora como as grandes criminosas.
Pudesse eu ser o lenço de Bruxelas
em que ela esconde as lágrimas singelas.
( "Diário de Notícias", Março 1874, Lisboa )
Cedo, porém, se afirma como personalidade inconfundível, original menos pelo desejo de renovação que pela força da autenticidade, trazendo à poesia uma lufada de ar puro: o seu amor do real, o que observa em torno, o que lhe transmitem os sentidos ( " A mim o que me rodeia é o que me preocupa" ).
A sua poesia é a de um artista, enamorado do concreto, que deambula pela cidade ou pelo campo e descreve de modo vivo, exato, as suas experiências.
Esta "objetividade antilírica", não impede a expressão, embora discreta, de ideias e sentimentos que definem o homem situado: o amor da actividade útil, saudável; o respeito pela ciência positiva do seu tempo; a confiança no progresso; a solidariedade com os humildes, vítimas das injustiças sociais. O contraste entre o egoísmo dos ricos e a miséria dos pobres é o tema que fica em suspenso no último poema de Cesário Verde, deixado incompleto, intitulado " Provincianas".
Retomando o tema acima citado do binómio campo-cidade, reparte a nostalgia tanto pelos grandes centros ( " Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!" ), tornando-se o poeta por excelência de Lisboa, cuja figura multifacetada descobrimos, inteira, em poemas como " Num Bairro Moderno" e " O Sentimento dum Ocidental "
O SENTIMENTO DUM
OCIDENTAL
Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a
maresia
Despertam-me
um desejo absurdo de sofrer.
O céu parece baixo e de neblina,
O gás extravasado enjoa-me, perturba;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba
Toldam-se duma cor monótona e londrina.
Batem carros de aluguer, ao fundo,
Levando à via férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista, exposições, países:
Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!
Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
As edificações sòmente emadeiradas:
Como morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam de viga em viga os mestres
carpinteiros.
Voltam os calafates, aos magotes,
De jaquetão ao ombro, enfarruscados,
secos;
Embrenho-me, a cismar, por boqueirões, por
becos,
Ou
erro pelos cais a que se atracam botes.
E evoco, então, as crónicas navais:
Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado!
Luta Camões no Sul, salvando um livro a
nado!
Singram soberbas naus que eu não verei
jamais!
E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!
De um couraçado inglês vogam os escaleres;
E em terra num tinir de louças e talheres
Flamejam, ao jantar alguns hotéis da moda.
Num trem de praça arengam dois dentistas;
Um trôpego arlequim braceja numas andas;
Os querubins do lar flutuam nas varandas;
Às portas, em cabelo, enfadam-se os
lojistas!
Vazam-se
os arsenais e as oficinas;
Reluz,
viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;
E num
cardume negro, hercúleas, galhofeiras,
Correndo
com firmeza, assomam as varinas.
Vêm sacudindo as ancas opulentas!
Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
E algumas, à cabeça, embalam nas canastras
Os filhos que depois naufragam nas
tormentas.
Descalças! Nas descargas de carvão,
Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;
E apinham-se num bairro aonde miam gatas,
E o peixe podre gera os focos de infecção!
( Cesário Verde )
- desde a paisagem física (Baixa pombalina, as ruelas junto ao rio, os bairros novos de ruas amplas ) à paisagem humana ( padres, militares, burguesas, varinas, operários, calceteiros, mendigos ) sem esquecer a Lisboa noturna à luz débil do gás e a cidade soalheira, garrida, laboriosa, os cais, os emigrantes, a ânsia do mar desconhecido, e as tradições dos Descobrimentos -, como exalta a perfeita integração na vida campesina, sem bucolismos, mas activa, saudável, natural visível no poema " Nós ".
Antes quer o "ritmo do vivo e do real" que "essa perfeição do fabricado".
Companheiro de Ramalho Ortigão, é o poeta da Natureza anti-literária, das coisas boas, gostosas, cheirosas, úteis, do labor equilibrado, produtivo.
Publicado já após a sua morte, através do seu grande amigo Silva Pinto, os seus poemas - tal como o próprio autor tinha preparado antes de morrer- constituem " O Li vro de Cesário Verde", que veio a ter inúmeras edições até aos nossos dias.
Os seus sentidos permanentemente despertos, inebriados sobretudo pela cor, prendem-no ao imediato da Natureza luminosa e das pessoas recortadas na paisagem, tanto rural como citadina, não o impedindo, porém, de ser sensível às injustiças sociais.
Deve-se-lhe a renovação impressioinista da linguagem poética, o que faz dele um precursor de Fernando Pessoa e do modernismo português.
Um dia, Fernando Pessoa escreveu sobre Cesário Verde: " O sentimento é forte e sincero, mas reprimido, e é nisto que Cesário é curioso. É um português que reprime o sentimento".
( in " Cesário Verde - O poeta génio ", de Maria Filomena Mónica )
Dois heterónimos de Pessoa prolongam as duas faces da poesia de Cesário Verde: Álvaro de Campos, o poeta citadino, e Alberto Caeiro " o camponês/que andava preso em liberdade pela cidade". E ambos invocam o precursor!
"Ao Entardece Debruçado Pela Janela",
de Alberto Caeiro
Ao entardecer, debruçado pela janela
e sabendo de soslaio que há campos em frente,
leio até me arderem os olhos
o Livro de Cesário Verde.
Que pena que tenho dele! Ele era um camponês
que andava preso em liberdade pela cidade.
Mas o modo como olhava para as casas,
e o modo como reparava nas ruas,
e a maneira como dava pelas cousas,
é o de quem olha para árvores,
e de quem desce os olhos pela estrada por onde vai andando
e anda a freparar nas flores que há pelos c ampos...
por isso ele tinha aqudela grande tristeza
que ele nuynca duisse bem que tinha,
mas andava na cidade como quem anda no campo
e triste como esmagar flores em livros
e pôr plantas em jarros...
Quando Cesário morre aos 31 anos de idade, ainda não conseguira publicar livro algum, embora tivesse todo um esquema preparado para edição dos poemas que fora escrevendo.
E é só no ano seguinte à sua morte - 1887 - que o seu amigo Silva Pinto publicará " O Livro de Cesário Verde", livro que se tornou um ícone para a cidade de Lisboa que lhe deu direito a um pequeno busto num jardim que tomou o seu nome: Jardim Cesário Verde ( na Praça Ilha do Faial, à Estefânia ).
A obra completa - 1964 - viria a ter novos acréscimos na edição de 1976 ( só quase 80 anos após a sua morte ).
Aconselha-se a leitura do livro de Filomena Mónica sobre Cesário Verde
Maria Filomena Mónica, socióloga e atenta às questões da Cultura tenta abordar a obra e a vida de Cesário, não só à luz do período em que este viveu, mas relembrando o que os poetas, seus contemporâneos, andavam a escrever enquanto os seus versos eram publicados.
"É NO CONTEXTO DA POESIA DO SEU TEMPO QUE A GENIALIDADE DE CESÁRIO PODE SER COMPREENDIDA".
* NOTA - Parnasianismo, diz-se da escola de poetas franceses que se caracteriza, em reacção contra as efusões românticas, por uma poesia erudita e impessoal. A escola parnesiana reunia poetas de temperamentos diferentes.
LÁGRIMAS
Cesário Verde
Ela chorava muito e muito,
aos cantos,
frenética, com gestos
desabridos;
nos cabelos, em ânsias desprendidos,
nos cabelos, em ânsias desprendidos,
brilhavam como pérolas os
prantos.
Ele, o amante, sereno como os
santos,
deitado no sofá, pés
aquecidos,
ao sentir-lhe os soluços
consumidos,
sorria-se cantando alegres
cantos.
E dizia-lhe então, de olhos
enxutos:
- “ Tu pareces nascida de
rajada,
“ Tens despeitos raivosos,
resolutos;
“ Chora, chora, mulher
arrenegada;
“ Lacrimeja por esses
aquedutos…
“ Quero um banho tomar d’água
salgada”.
LÚBRICA
Cesário Verde
Mandaste-me dizer,
no teu bilhete ardente,
que hás-de por mim morrer,
morrer muito contente.
Lançaste no papel
as mais lascivas frases;
a carta era um painel
de cenas de rapazes!
Ó cálida mulher,
teus dedos delicados
traçaram do prazer
os quadros depravados!
Contudo, um teu olhar
é muito mais fogoso,
que a febre epistolar
do teu bilhete ansioso:
do teu rostinho oval
os olhos tão nefandos
traduzem menos mal
os vícios execrandos.
Teus olhos sensuais
Libidinosa Marta,
Teus olhos dizem mais
Que a tua própria carta.
As grande comoções
Tu, neles, sempre espelhas;
São lúbricas paixões
As vívidas centelhas…
Teus olhos imorais,
Mulher, que me dissecas,
Teus olhos dizem mais, que muitas
bibliotecas!
( 1873 )
A DÉBIL
Cesário Verde
Eu, que sou feio, sólido, leal
a ti, que és bela, frágil, assustada,
quero estimar-te, sempre, recatada
numa existência honesta, de cristal.
Sentado à mesa dum café devasso,
ao avistar-te, há pouco, fraca e
loura,
nesta Babel tão velha e corruptora,
tive tenções de oferecer-te o braço.
E, quando socorreste um miserável,
eu, que bebia cálices d’absinto,
mandei ir a garrafa, porque sinto
que me tornas prestante, bom,
saudável.
“ Ela aí vem !” disse eu para os
demais;
e pús-me a olhar, vexado e
suspirando,
o teu corpo que pulsa, alegre e
brando,
na frescura
dos linhos matinais.
Via-te pela porta envidraçada;
e invejava – talvez que o não
suspeites! –
esse vestido simples, sem enfeites,
nessa cintura tenra, imaculada.
Ía passando, a quatro, o patriarca.
Triste eu saí. Doía-me a cabeça;
uma turba ruidosa, negra espessa,
voltava das exéquias dum monarca.
Adorável! Tu muito natural
seguias a pensar no teu bordado;
avultava, num largo arborizado,
uma estátua de rei num pedestal.
Sorriam nos seus trens os titulares;
e ao claro sol, guardava-te no
entanto,
a tua boa mãe que te ama tanto,
que não te morrerá sem te casares!
Soberbo dia! Impunha-me respeito
a limpidez do seu semblante grego;
e uma família, um ninho de sossego,
desejava beijar sobre o teu peito.
Com elegância e sem ostentação,
atravessavas branca, esbelta e fina,
uma chusma de padres de batina,
e d’altos funcionários da nação.
“Mas se a atropela o povo turbulento!
se fosse, por acaso, ali pisada !”
de repente, paraste embaraçada
ao pé dum numeroso ajuntamento.
E eu, que urdia estes fáceis
esbocetos,
julguei ver, com a vista de poeta,
uma pombinha tímida e quieta
num bando ameaçador de corvos pretos.
E foi então que eu, homem varonil,
Quis dedicar-te a minha pobre vida,
A ti, que és ténue, dócil, recolhida,
Eu, que sou hábil, prático, viril.
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