O POETA DO MÊS DE AGOSTO É
PRÉMIO
RAINHA SOFIA DE POESIA
IBERO-AMERICANA 2013
NUNO JÚDICE
“ Se tivesse de começar por uma definição, diria que a
escrita é um trabalho
manual”.
Diz Nuno Júdice: “ Há uns anos ,
foi-me pedido que escrevesse um texto sobre a escrita, no sentido activo do
vocábulo: pôr a palavra no papel”.
E desse texto, publicado em A Escrita das Escritas, editado pela
Fundação Portuguesa das Comunicações em 2000, foi com o que nós resolvemos
iniciar este texto, o que o poeta destacou.
Nuno Júdice nasceu em 1949, em Mexilhoeira Grande (Algarve ).
Formou-se em Filologia Românica, pela Universidade Clássica de Lisboa.
É professor associado da Universidade Nova de Lisboa, onde se doutorou em 1989
( na área de Literaturas Românicas Comparadas ) com uma tese sobre Literatura
Medieval.
Publicou vários livros de ensaio ( estudos sobre teoria da literatura e
literatura portuguesa ), para além de crítica regular em jornais e revistas.
É poeta e ficcionista. O seu primeiro livro de poesia foi publicado em
1972.
“Ao ler textos escritos em fases várias da
minha vida, em diversas circunstâncias, e em lugares diferentes, há sempre
pequenas coisas que transportam uma marca subjectiva
- hesitações de traço, a tinta, o risco da
caneta, desvios na linha - que evocam um dia de temporal, uma janela de onde se
via o mar ou montanhas, um quarto incaracterístico dando para um desvão”.
Em a “Antologia da Poesia
Portuguesa do séc.XIII ao século XXI”
da Porto Editora ( Novembro de 2009 ), lê-se o seguinte relativamente à poesia
de Nuno Júdice:
“Poesia primeiro do excesso e da
desnaturalização do poético”
e “ depois, de uma dicção clássica que percorre e relê
incansavelmente todos os topoi * da
poesia ocidental, a poesia de Júdice é uma declinação da poesia novecentista
como ruína e do poema como alegoria
de um excesso de influência e memória que contudo não ressente”.
* - A palavra topoi que aparece na citação
acima feita, é uma palavra grega que significa “Lugar comum” ou
“Linha de raciocínio”. Aqui parece-me evidente estar a ser utilizada na sua
acepção de “lugar comum”.
Entre 1997
2004, desempenhou as funções de Conselheiro Cultural e Director do
Instituto Camões em Paris.
Colaborou em acções de divulgação da Cultura portuguesa no estrangeiro,
como a Exposição Universal de Sevilha, em 1992, e a Feira do Livro de Frankfurt
dedicada a Portugal em 1997.
Recebeu os mais importantes prémios de
poesia portugueses e tem livros traduzidos em várias línguas, com destaque para
Espanha, Itália, Holanda, México, Bulgária, Suécia, Dinamarca, Vietname, Irão,
entre outros. Em França está publicado na colecção “Poésie”
da Gallimard.
Em 2009, assumiu a direcção da revista Colóquio-Letras da
Fundação Calouste Gulbenkian.
É coordenador com Fernando Pinto do Amaral, dos Seminários de Tradução
de Poesia organizados bianualmente pela Fundação Casa de Mateus.
“Tendo usado habitualmente a máquina de
escrever para a poesia, desde fins dos anos 60, e depois com o computador, a
partir de fim dos anos 80, a minha relação com o texto é, antes demais, uma
relação com o teclado.”.
“ É significativo disso que, ao escrever à
mão, o que resulta é uma poesia condicionada pela tradição clássica do soneto”.
( Em “ O Breve Sentimento do Eterno” )
Os seus mais recentes livros de Poesia são A Matéria do Poema
(2008) e Guia de Conceitos Básicos (2010) e recentemente Implosão.
AS MENINAS DE
AVIGNON
Provavelmente, Picasso não pintou as meninas
de avignon a pensar nos homens que iam às meninas
em avignon; nem se serviu das meninas de avignon
quando as pintou, a partir de mulheres que
não eram meninas, mas modelos, e a quem pedia que
se comportassem como as meninas de avignon, nuas, na
sala de espera do bordel onde os homens de avignon,
quando íam às meninas, as escolhiam a dedo, ou só
ao acaso, porque o que eles queriam não precisava
de grande escolha, mas de um corpo, e qualquer corpo
servia para esses homens que não sabiam que
Picasso iria pintar as meninas de avignon para que
eles não voltassem ao bordel sem pensar, primeiro,
nas meninas de Picasso, e só depois nas meninas
de avignon. Também eu, uma dia, quando fui
a avignon, pensei nas meninas de Picasso, sem
pensar que eram as mesmas mdninas que havia
em avignin, onde Picasso as foi buscar. Mas
não as vi: as meninas de avignon escondem-se de
quem vai a avignon sem saber onde elas estão,
a não ser no quadro de Picasso, que não está
em avignon. E é provável que, se as visse,
pensasse nelas, e não nas meninas de Picasso, para
as pôr num poema que se poderia chamar
como o quadro de Picasso, para que entre as meninas
de Picasso e as meninas do meu poema não houvesse
nenhuma diferença, como se fosse possível passar
das meninas de Picasso para as meninas do meu poema
através da ponte de Avignon.
Nuno Júdice
LANZAROTE
Nuno
Júdice
(
Para José Saramago )
Numa
ponta da ilha, o infinito; na
outra
ponta da ilha, o infinito. De
uma
ponta à outra, a ilha é
pequena.
Mas cerca-a o infinito,
e
quando vamos de uma ponta
à
outra, a ilha é demasiado
pequena
para o infinito que
a cerca, como se o infinito apenas
servisse para medirmos o amanho
da ilha. Porém, se olharmos
para a ilha de dentro do infinito,
é o infinito que nos parece
pequeno, quando o medimos
pelo tamanho da ilha.
CENA DE INVERNO
Parada no meio do campo, na tarde de chuva,
a mulher não avança para o meio da estrada, nem recua
para perto da casa. Apanha chuva, com a cabeça virada
para o chão, como se esperasse que a terra a engula,
ou que o céu se esqueça dela, e as nuvens se afastem.
Numa tarde de chuva, no meio do campo, há mulheres
que não sabem para onde ir; e entre a casa e a estrada
ficam paradas, ouvindo o ruído da chuva, e pensando
na vida que as levou para o meio do campo, indecisas
entre a terra e o céu, enquanto a chuva não pára.
Ao ver a mulher parada no meio do campo, pensei
em chamá-la, para que saísse de dentro da lama; mas
continuei o meu caminho, como se ela não existisse,
sabendo que se parasse ao lado dela também eu olharia
para o chão, até que a terra me engolisse.
( Nuno Júdice )
ROL
Paro na rua para ver a montra da mercearia
Como se analisasse um poema. Chouriços e alheiras
Estendem.se como versos, sacos de bacalhau
Arrumados como estrofes, garrafas de azeite
Que dão sabor à secura das rimas, o pão
Que guarda ainda a levedura de um ritmo
Que se mastiga na boca –tudo
está no seu lugar, como se o merceeiro
soubesse que existe uma poética
própria para regular as compras. Depois,
entro na loja; e quando me perguntam
o que quero fico na dúvida: romãs,
ou o verso branco de um pacote
de farinha? Um pedaço de queijo, ou
a metáfora embalada para consumo
rápido? Castanhas ao quilo, como se fossem
sílabas, para assar no forno da frase? E acabo
por sair sem trazer nada, mas com
o poema no saco das compras.
( Nuno Júdice )